Literatura em língua francesa, Trechos,

O verão decisivo de Marguerite Duras

Em ‘O verão de 80’, escritora entrelaça íntimo e político para refletir sobre questões importantes até hoje; leia trecho

19ago2024
(Reprodução)

A coletânea de dez crônicas O verão de 80, da romancista francesa Marguerite Duras, chega às livrarias nesta semana pela Relicário, em tradução de Adriana Lisboa. Em meio a memórias e reflexões pessoais, a também diretora de cinema tece críticas à França e ao mundo na década marcada por reviravoltas políticas e sociais.

No hotel Rochas Negras, na Normandia, onde Duras se refugiava naqueles anos, à sua janela com vista para a praia de Trouville-sur-Mer, ela escreveu originalmente as crônicas para o Libération

Encomendadas pelo diretor do “Libê”, como é conhecido o jornal francês, os textos são reflexões sobre acontecimentos da época (das Olimpíadas de Moscou à fome na África) e seu cotidiano na pequena cidade praiana, momentos decisivos na vida da autora, que voltou a se dedicar à literatura a partir daquele verão. Leia um trecho a seguir. 

Trecho de ‘O verão de 80’

Então, aqui estou, escrevendo para o Libération. Não tenho um tema para este artigo. Mas talvez isso não seja necessário. Acho que vou escrever sobre a chuva. Está chovendo. Chove desde o dia quinze de junho. Deveríamos escrever para um jornal como se estivéssemos andando na rua. Andamos, escrevemos, atravessamos a cidade, ela é atravessada, termina, a caminhada continua, da mesma forma atravessamos o tempo, uma data, um dia, e depois ele é atravessado, termina. Chove sobre o mar. Sobre as florestas, a praia vazia. Não há os guarda-sóis do verão, nem mesmo fechados. O único movimento nos hectares de areia, as colônias de férias. Este ano eles são muito pequenos, parece-me. De vez em quando os monitores os soltam na praia, de modo a não enlouquecerem. Eles chegam gritando, atravessam a chuva, correm junto ao mar, berram de alegria, travam batalhas com a areia molhada. Ao cabo de uma hora, estão inutilizáveis, então os levam para dentro, fazem-nos cantar Les lauriers sont coupés [Os louros estão cortados]. Exceto um deles, que observa. Você não quer correr? Ele diz não. Bom. Observa os outros cantarem. Perguntam-lhe: você não quer cantar? Ele diz não. Depois se cala. Chora. Perguntam-lhe: por que você está chorando? Ele diz que se dissesse não entenderiam o que diria, que não adianta dizer. 

Chove nas Roches Noires, nas encostas argilosas das Roches Noires, essa argila perfurada em toda parte por nascentes frescas e que aos poucos avança, desliza em direção ao mar. Sim, existem dez quilômetros dessas colinas de argila que saíram das mãos de Deus, o suficiente para se construir uma cidade de 100 mil habitantes, mas desta vez não, não é possível. Então também chove sobre o granito preto e o mar e não há ninguém para ver. Exceto a criança. E eu, que a vejo. O verão não chegou. Em seu lugar, este tempo que não podemos classificar, que não podemos dizer qual é. Erguido entre o homem e a natureza, é uma parede opaca feita de água e neblina. O que é mesmo essa ideia, o verão? Onde ele está enquanto demora a chegar? O que era enquanto estava aqui? De que cor, de que calor, de que ilusão, de que simulacro era feito? O mar está na chuva fina, escondido. Já não vemos mais Le Havre nem a longa procissão de petroleiros parados em frente ao porto de Antifer. 

Hoje o mar está ruim, nada mais. Ontem havia uma tempestade. Ao longe, ele está pontilhado de fragmentos brancos. De perto, está por inteiro branco, branco em abundância, distribui infinitamente grandes braçadas de brancura, abraços cada vez mais vastos, como se recolhesse e levasse para o seu reino um misterioso repasto de areia e luz. Atrás dessa parede a cidade está cheia, fechada em seus imóveis de aluguel, as pensões cinzentas das ruas à inglesa. Os únicos movimentos são essas travessias deslumbrantes das crianças que irrompem morro abaixo em gritos intermináveis. Desde 1o de julho, a cidade passou de 8 mil a 100 mil habitantes, mas não podemos vê-los, as ruas estão vazias. Murmura-se: tem gente que vai embora, desanimada. O comércio estremece, desde 1o de julho os preços aqui só dobraram, em agosto triplicam, se forem embora o que será de nós? As praias são devolvidas ao mar, às lúdicas rajadas de vento, ao sal, à vertigem do espaço, à força cega do mar. Há sinais que são arautos de uma nova felicidade, de uma nova alegria, isso já circula nesta catástrofe relatada todos os dias com tristeza pelos nossos governantes. Nas ruas há pessoas solitárias andando ao vento, estão cobertas por impermeáveis K-way, seus olhos sorriem, elas se entreolham. 

Chegou em meio à tempestade a notícia de um novo esforço solicitado aos franceses diante de um ano difícil pela frente, semestres ruins, dias magros e tristes de desemprego crescente, não sabemos mais de que esforço se trata, de que ano, por que de súbito ele é diferente, não podemos mais ouvir esse senhor que fala para anunciar que há algo novo e que ele está conosco diante da adversidade, não podemos mais em absoluto vê-lo nem ouvi-lo. Mentirosos, todos eles. Chove sobre as árvores, sobre os alfeneiros por toda parte floridos, mesmo em Southampton, Glasgow, Edimburgo, Dublin, estas palavras, chuva e vento frio. Gostaríamos que tudo fosse esse infinito do mar e da criança que chora. As gaivotas estão voltadas para o mar, a plumagem alisada pelo vento forte. Ficam assim pousadas na areia, se voassem contra o vento ele quebraria suas asas. Fundidas à tempestade, espiam a desorientação da chuva. Sempre essa criança sozinha, que não corre nem canta, que chora. Dizem-lhe: você não quer dormir? Ele diz que não e que o mar está alto no momento e o vento está mais forte e ele pode ouvi-lo através da lona. Depois se cala. Estaria infeliz aqui? Ele não responde, faz um sinal sabe-se lá de quê, como o de uma leve dor, de uma ignorância pela qual haveria de se desculpar, talvez também sorria. E de repente vemos. Não o questionamos mais. Recuamos. Deixamos. Vemos. Vemos que o esplendor do mar está ali, ali também, ali, nos olhos, nos olhos da criança.