História difícil de contar

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História difícil de contar

Narrativa em cordel sobre refugiado sírio humaniza vidas que somem nas estatísticas, mas não trata de fatos sobre a guerra

01out2024 • Atualizado em: 30set2024 | Edição #86 out
Ilustrações de Luciano Tasso (Divulgação)

Existem histórias difíceis de contar para uma criança. Moreira de Acopiara escolheu uma delas para seu novo livro infantojuvenil, A longa caminhada de Jamil fugindo da guerra. É a experiência de um refugiado sírio entre bombardeios, tempestades e uma solidão incurável.

O autor cearense de 63 anos é um veterano da literatura de cordel, com dezenas de folhetos e livros publicados. Usa o estilo popular também nesta obra, toda escrita com sextilhas, que são as estrofes de seis versos.

A decisão de contar a história de um refugiado sírio por meio de um gênero tão brasileiro é poderosa. Um de seus efeitos é a universalização da trama. A guerra deixa de ser uma coisa que aconteceu em uma terra distante — e passa a ser algo que poderia ocorrer também com o leitor.

Acopiara tem evidente talento para condensar ideias complexas em poucas palavras. Um dos momentos mais interessantes, no nível do texto, é quando se refere ao protagonista como um “cidadão refugiado”.

Juntos, os termos “cidadão” e “refugiado” se eletrizam. Porque, afinal, os sírios nem sempre conseguem obter a cidadania dos lugares em que se refugiaram. Vivem sem direitos. A expressão é, assim, quase um oxímoro. Com ela, Acopiara lhes devolve parte da humanidade perdida.

As ilustrações de Luciano Tasso também impressionam pelo quanto dizem com tão pouco: uma onda levando uma foto embora, por exemplo, ou uma lágrima escorrendo do rosto de Jamil enquanto foge da Síria. O artista consegue capturar todo o drama e a tristeza dessa jornada.

A decisão de abandonar a família em uma guerra civil não é uma coisa banal e pede uma explicação

O livro introduz a guerra logo no início da história como algo que forçou Jamil a imigrar. Mas Acopiara não entra em detalhes sobre a natureza do confronto. Desvia da política ao apresentar essa guerra como só um fato.

A guerra civil síria começou em 2011 com protestos nas ruas pedindo pela democratização do país. O ditador Bashar al-Assad — que herdou o poder de seu pai — respondeu com força, radicalizando a situação. Cerca de 600 mil pessoas morreram, segundo estimativas. Os confrontos também fizeram com que mais de 5 milhões de sírios deixassem o país em busca de refúgio: é esse o caso de Jamil, o protagonista da história.

Frustrações

Talvez seja coisa demais para contar para uma criança. Mas, do ponto de vista histórico, o livro deixa de responsabilizar de modo claro os atores políticos que engendraram uma das guerras mais violentas das últimas décadas. Conflitos não são fenômenos naturais e tampouco são neutros.

A decisão de imigrar também não está detalhada. Acopiara conta que Jamil perdeu a irmã e a mãe durante a guerra. Viu que não tinha mais como ficar e optou por viajar a um país em que pudesse viver sem medo.

Jamil deixa a mulher e o filho para trás enquanto busca novas oportunidades. Não está claro, porém, porque se separam. A decisão de abandonar a família em uma guerra civil não é uma coisa banal e pede uma explicação — tanto para a criança quanto, aliás, para o leitor adulto.

A arte, por sua vez, frustra quando utiliza elementos orientais na ambientação: coisas como tapetes, turbantes e arabescos. Esse cenário estilizado pouco se parece com a Síria onde o protagonista Jamil viveria.

Na sua fuga, ademais, o homem passa pelo que se assemelham a pirâmides. Faria sentido caso Jamil viajasse para o Egito. Não parece ser o caso. Síria e Egito nem têm uma fronteira. Assim, esses monumentos faraônicos funcionam somente como símbolos de um oriente genérico. É o tipo de coisa que o pensador palestino Edward Said critica no seu clássico Orientalismo, livro de 1978. Said chama de “orientalistas” essas imagens estereotipadas e superficiais sobre o que seria o Oriente.

Essas são questões importantes não apenas sobre este cordel em particular, mas sobre como pensamos e discutimos o mundo de cultura árabe de maneira geral — inclusive quando conversamos com crianças.

Nada disso invalida, porém, o impacto da história que Acopiara conta. Sua obra tem o mérito de nos lembrar da humanidade de pessoas como Jamil, que costumam sumir entre as estatísticas e as páginas dos jornais.

Quem escreveu esse texto

Diogo Bercito

É jornalista e autor de Vou sumir quando a vela se apagar (Intrínseca).

Matéria publicada na edição impressa #86 out em outubro de 2024. Com o título “História difícil de contar”

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