Literatura em língua francesa,

Entre dois mundos

Filha de francês e sul-coreana, Elisa Shua Dusapin cria romance polifônico sobre deslocamentos, encontros e o trabalho literário

01jan2021 | Edição #41 jan.2021

A principal proeza de Elisa Shua Dusapin em seu romance Inverno em Sokcho é evocar os efeitos do frio apenas com as palavras e com as imagens que elas constroem: as mãos quase congeladas, a respiração condensada, os corpos que se aproximam, o tempo em suspenso. O inverno intensifica a desolação de uma paisagem que já não é pródiga em encantos: “O vento dispersava as nuvens sobre o asfalto. Fim do dia. De cada lado da estrada, carcaças de cidades. Papelões, plásticos, toldos azuis. A província de Gangwon tinha sido esquecida pela urbanização do país depois da guerra”. A falta de sol também faz sua contribuição: “Uma temperatura de menos 27 graus submergiu a cidade durante a noite”.

A narrativa toma como ponto de partida o exotismo de uma cidade distante, Sokcho, na Coreia do Sul, famosa pelos banhos termais e pelo parque natural Seoraksan. Acompanhamos a história pela perspectiva de uma jovem franco-coreana que trabalha em uma pensão — é através do seu olhar que acompanhamos as mudanças na paisagem, os turistas e seus resíduos e o caráter estacionário e repetitivo de uma região que depende do turismo (“Sokcho só fazia esperar. Os turistas, os barcos, os homens, o retorno da primavera”). Em certos momentos, o leitor inclusive esquece da distância que o separa de Sokcho, imerso em um conjunto de signos compartilhados pela globalização e pela voragem da sociedade de consumo.

Em paralelo ao frenesi dos estrangeiros, a narradora por vezes interrompe a movimentação da trama para separar certos detalhes, como o besouro que sobe na mesa: “Parou na frente dos meus documentos administrativos. Sobrevivente do inverno, ele devia ter precisado se esconder dentro de algum lugar antes das primeiras geadas. Peguei-o com delicadeza. Suas patas começaram a se mover no vazio, podia-se dizer que ele estava implorando com suas longas antenas. Virei-o para ver seu ventre. Bonito. Todo liso. Todo arredondado”. Em contraste com as cenas seguintes, fica claro que o besouro não é o único lidando com “sobrevivência” e “esconderijos”.

O romance ganha um novo eixo de atenção quando surge Yan Kerrand, desenhista francês em viagem, autor de uma história em quadrinhos cujo herói é “um arqueólogo que percorria o mundo”. O contato com Kerrand permite à narradora explorar, sutilmente, sua dupla inscrição, entre França e Coreia do Sul (detalhe biográfico compartilhado pela autora, Elisa Shua Dusapin, filha de pai francês e mãe sul-coreana). Ela funciona como elemento de ligação entre o exótico e o ordinário, entre o fascínio daquilo que se vê pela primeira vez e o enfado daquilo que se vê todos os dias. “Chegamos à gruta, um pequeno templo que abrigava esculturas de Buda em nichos”, escreve ela sobre um dos passeios. “Kerrand percorreu-as minuciosamente. Queria conhecer as lendas e contos coreanos associados à montanha.”

A obra atualiza um traço fundamental da literatura francesa: sua capacidade de absorver e expandir experiências que vão além das fronteiras nacionais

O turista francês surge para compor um tríptico de personagens que gravitam ao redor da narradora. O primeiro deles é Jun-oh, o namorado que trabalha como modelo e que viaja com frequência (“Fazia dois dias que ele tinha viajado, e para mim sua existência era quase impalpável. Ele tinha ficado preso lá, passaria mais tempo do que o previsto em Seul para um período de testes”). O segundo é Park, dono do hotel, chefe da narradora, sempre atento, supervisionando a movimentação de todos (“No halo do abajur rosa, com Edith Piaf no rádio, Park chupava seu macarrão gorgolejando”). 

Essa ampliação no nível dos personagens é equiparada por uma ampliação também no nível dos idiomas: diferentes frases e fragmentos de diálogos surgem em diferentes línguas (especialmente o coreano e o inglês), mas são sempre filtrados pela consciência narradora em francês (no caso da edição brasileira da Âyiné, na versão em português da tradutora Priscila Catão). Com isso, o leitor do romance acompanha uma sorte de coesão polifônica, que dá conta tanto da multiplicação de perspectivas quanto da construção bem demarcada de um ponto de vista específico. É nessa contradição produtiva, trabalhada em detalhes e em planos gerais, que se funda a originalidade do romance de Dusapin.

O romance fala de si próprio, da dificuldade inerente ao trabalho literário, quando traz à superfície a relação entre os dois personagens, Kerrand e a narradora. Isso acontece porque a narrativa se transforma em um jogo de espelhos entre expectativas, projeções e desejos: o estrangeiro deseja conhecer “as lendas e contos” da terra exótica; a jovem local serve de guia, mas convive diariamente com seu próprio deslocamento, com a “impureza” da sua identidade; o contato entre eles, por fim, é evidenciado em toda a sua artificialidade, especialmente quando a parte final do romance se torna um comentário sobre a escrita e a ficção: “Virei as páginas de novo. A história se diluía. Ela se diluiu como uma errância entre meus dedos, diante da minha vista”. Além disso, o equilíbrio precário de uma situação prévia é transformado com a chegada de Kerrand: “De trás do balcão, Park passou a manhã me observando de soslaio. Devia ter percebido que eu não estava tratando o francês como os outros hóspedes”.

Além das fronteiras

Inverno em Sokcho reforça e atualiza um traço fundamental da literatura francesa: sua capacidade de absorver e expandir experiências que vão muito além das fronteiras nacionais. Podemos pensar nas relações de Victor Segalen com a Polinésia e com a China; nas relações de J. M. G. Le Clézio com a Mauritânia; ou, mais recentemente, no diálogo estabelecido por Mathias Énard entre a cultura francesa e as culturas árabe e persa, ou Scholastique Mukasonga e seus laços com Ruanda.

Parte do valor cognitivo da literatura está em sua capacidade de questionar, de forma artística, os valores engessados mantidos socialmente ao longo de gerações. Romances como Inverno em Sokcho de Dusapin tornam visível — ainda que indiretamente — um modo diverso de relacionamento com as diferenças e sua circulação em termos comunitários, tornando disponível à imaginação todo um conjunto de possibilidades. 

Este texto foi realizado com o apoio da Embaixada da França.

Quem escreveu esse texto

Kelvin Falcão Klein

Professor da Unirio, é autor de Cartografias da disputa: entre literatura e filosofia (Editora UFPR).

Matéria publicada na edição impressa #41 jan.2021 em dezembro de 2020.