O escritor Jeferson Tenório (Bob Wolfenson/Divulgação)

Literatura brasileira, Literatura Negra,

Uma cota de esperança

Sem deixar de expor feridas raciais, Jeferson Tenório amplia leque temático com protagonista cotista que constrói caminho pela literatura

21out2024 • Atualizado em: 11nov2024 | Edição #87

Sobre o que escreve Jeferson Tenório, autor de quatro romances e ganhador do Jabuti por O avesso da pele? A resposta simples é: sobre racismo. Mas talvez não seja tão simples assim. De onde eles vêm, seu primeiro romance depois de se tornar um autor best-seller, seria sobre as cotas universitárias, segundo a divulgação da editora, talvez querendo promover o ângulo mais polêmico do livro. E, sim, as cotas permeiam toda a narrativa. Acompanhamos a chegada dos primeiros alunos cotistas a uma universidade federal gaúcha e tanto seus dilemas para serem aceitos quanto os dos outro alunos e professores para recebê-los. De onde vêm esses cotistas?, se perguntam, ecoando o título. Quem é esse outro? De onde eles vêm, entretanto, é sobre as cotas da mesma maneira que Moby Dick é sobre a indústria baleeira.

A importância das primeiras frases na literatura já é proverbial. Por outro lado, poucas últimas frases são lembradas, com raras e honrosas exceções (“Sim!”, diz Molly Bloom, no final de Ulysses). Na contramão dessa tendência, a obra de Tenório demonstra uma preocupação sustentada com últimas frases de impacto. Em seu primeiro romance, O beijo na parede (Sulina, 2013), o menino João, depois de muito sofrimento, termina dizendo: “É preciso não ter medo”. Estela sem Deus (Companhia das Letras, 2022) se conclui no momento em que a narradora abandona a casa do namorado e se joga na vida: “Sofremos o que tínhamos de sofrer”, diz Estela. “Não precisávamos ter medo de mais nada. A tristeza nos absolveria de Deus.” Frases sofridas, mas esperançosas, que dialogam com o final do livro anterior.

Em O avesso da pele (Companhia das Letras, 2020), Pedro, ainda adolescente, tem o pai morto injustamente em uma abordagem policial. Depois de reconhecer o corpo, afirma: “Vou em frente, na direção do Guaíba. Tenho Ogum em minhas mãos porque agora é a minha vez”. No meio de uma tragédia maior que as dos livros anteriores, também existe uma nota triunfal.

Tenório fala sobre racismo porque o tema atravessa a vida de todas as pessoas no Brasil, brancas ou negras

Nos três romances, as últimas frases chamam ainda mais atenção por estarem em um tom mais esperançoso do que as histórias em si. É quase como se Tenório tivesse decidido que, depois de tanta dor e horror, não podia permitir que seus leitores fechassem os livros sem algum consolo. No contexto geral das três obras, no entanto, essa esperança poderia soar algo forçada e vazia, especialmente em comparação aos horrores a que o leitor tinha acabado de ser exposto.

Em De onde eles vêm, temos uma última frase igualmente memorável por sua luminosidade esperançosa, mas, dessa vez, o romance inteiro nos prepara para ela em um crescente de otimismo, força e potência. “A vida é boa”, conclui o narrador Joaquim, universitário cotista. A frase também é o título da quarta e última parte, onde a vida vai progressivamente melhorando para o protagonista. Não seria um livro de Tenório, porém, se essa última afirmação não estivesse em um contexto irônico e agridoce. Imediatamente antes, a penúltima frase diz: “Dois mil e vinte será um ano promissor, pensei”. Pobre Joaquim. Mal sabe o que vai enfrentar. Mas nós sabemos.

Valor estético

O avesso da pele foi recebido como uma obra-prima sobre racismo no Brasil. Tenório, entretanto, tentou pautar leituras que fugissem um pouco do tema. Em uma entrevista, afirmou que não é um livro sobre o tema, mas sobre “a complexidade de relações humanas atravessadas pelo racismo”. Para o autor, “toda pessoa negra é tensionada pela necessidade de se colocar politicamente devido a sua cor e, ao mesmo tempo, não se deixar ser reduzida a ela”. Daí que reduzir uma obra literária complexa à questão racial também é reduzir seu valor estético.

O novo romance parece ser a resposta de Tenório a essas questões. Depois de escrever aquele que é, convenhamos, um dos grandes romances brasileiros sobre racismo, ele dá um passo atrás, amplia seu leque temático e, sem abrir mão de continuar expondo nossas feridas raciais, também mostra que não são as únicas que temos. Lauro, melhor amigo de Joaquim, também cotista e preto retinto, é gay. A tia Julieta é uma empregada doméstica em idade avançada que compartilha com o sobrinho os cuidados com a avó. À medida em que Joaquim se envolve com a universidade, os cuidados com a avó acabam sobrando para a tia. Afinal, ela é mulher, não? Colorismo, homofobia, etarismo, misoginia, capacitismo: definitivamente De onde eles vêm não é só sobre racismo, mas sobre a outrofobia de modo geral.

Os três romances anteriores de Tenório são marcados pela raiva. Diante de tudo o que passaram João, Estela e Pedro nas mãos do racismo estrutural, ressentimento é o mínimo que se espera. Enfrentando os desafios de fazer parte da primeira geração de cotistas universitários, Joaquim não seria diferente. Em dado momento, confessa:

Apeguei-me à solidão e à autopiedade. Como se aquele lugar de resignação e apatia me trouxesse algum tipo de recompensa interna. […] A verdade é que éramos negros e estávamos todos fodidos, cumprindo nossa sentença de ter uma vida fodida.

Outros protagonistas de Tenório estiveram nessa situação. Estela parece que vai se libertar, mas a história termina quando dá o primeiro passo. O pai de Pedro em O avesso da pele é morto pela polícia no momento em que reencontra o sentido da docência em literatura. Para essas personagens, os caminhos à frente sempre parecem nebulosos ou bloqueados. Mas não em De onde eles vêm. Assim como Tenório se formou como o primeiro cotista racial da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Joaquim também consegue cavar para si um espaço não só de esperança, mas de felicidade, com a ajuda da literatura.

Quando pessoas brancas escrevem sobre suas experiências, ninguém diz que estão escrevendo sobre a branquitude. O estrangeiro, de Camus, é famoso por ser “um romance existencial”, não como a história de um branco que matou um árabe sem motivo. Já Filho nativo, de Richard Wright, escrito pouco antes e tão existencial quanto, é considerado “um romance sobre racismo nos Estados Unidos”. A obra de Tenório fala sobre racismo, mas só porque o racismo atravessa a vida de todas as pessoas no Brasil, brancas ou negras. São, na verdade, romances de formação, onde pessoas constroem vidas possíveis em uma sociedade que as vê como o outro.

Quem escreveu esse texto

Alex Castro

Escritor e professor, escreve para a Folha de S.Paulo e é autor de Atenção (Bicicleta Amarela, 2019) e Mentiras reunidas (Oficina Raquel, 2023).

Matéria publicada na edição impressa #87 em novembro de 2024.

Para ler este texto, é preciso assinar a Quatro Cinco Um

Chegou a hora de
fazer a sua assinatura

Escolha como você quer ler a Quatro Cinco Um.

Ecobag Exclusiva

Faça uma assinatura anual com até 56% de desconto e ganhe uma ecobag exclusiva!

Entre para nossa comunidade de leitores e contribua com o jornalismo independente de livros.