Literatura brasileira,

O Norte não é longe daqui

Em livro de estreia, poeta baiano de Feira de Santana refaz seu percurso até São Paulo e tematiza o significado da própria migração

01fev2021 | Edição #42

Não é corriqueiro que um poeta faça sua estreia em livro com tanta contundência, liberdade de espírito e domínio de seus materiais de trabalho como Rodrigo Lobo Damasceno nesse Casa do Norte, publicado no final do ano passado 2020 em uma pequena editora paulistana chamada Corsário-Satã.

Baiano de Feira de Santana, o poeta se mudou para São Paulo para estudar — e o livro, a seu modo, entre suas memórias da juventude sertaneja e crônicas do presente hiperurbano, refaz tal percurso ao mesmo tempo que tematiza o significado da própria “migração”, título deste poema curto: 

ave sem asas ou rotas
fiel sem templos ou penas

sem mestres (reis) ou guias (leis)
saudoso sem nostalgias.
 

Nas três partes do livro — Original Campo Limpo, Lavra Diamantina e Casa do Norte —, logo se nota uma poética marcada pelas mais variadas geografias — desertos, avenidas, cidades de beira de estrada, “que crescem como cáries” —, imaginadas pelo poeta como “pátrias”. Em “Cuba”, outro poema curto, Rodrigo Lobo anuncia justamente as suas “três pátrias” e, no entanto, apesar do tom sentencioso, só menciona duas a rigor: 

três pátrias tenho eu 
(são os meus times):
o pino do sol do sertão 
o sal da canção 
de caymmi.

 
A terceira pátria seria Cuba, país-ilha que se apresenta (sem maior explicação) no título, ou o próprio vazio, que apontaria para a condição apátrida e exilada do poeta — e na verdade de todos nós? As pátrias são muitas, pois as casas são muitas, conforme os versos do belíssimo “Observação do céu”, que termina em tal conclusão-chave: 

uma coisa é certa: cometas, 
sempre haverá canetas 
resolvendo 
rumos 
remexendo 
tudo — é como diz o outro: 
a verdade é uma só: são muitas 
nossa casa é uma só: são muitas 
a saudade é uma só: são muitas.

Como lembra Nícollas Ranieri no prefácio ao volume, “casa do Norte” é o nome que se dá aos armazéns em São Paulo que vendem produtos variados do Nordeste, espécie de ilhota nordestina dentro da cidade. 

Ao situar o arranjo dos seus poemas em torno de tal espaço, e não apenas de uma memória idealizada da origem, Rodrigo Lobo parece sugerir que a casa do Norte ou a casa da infância e de Feira de Santana está em toda parte — como na primorosa sínese dos últimos versos de “Bar Torquato Neto”: 

dentro de nós 
há de ser 
o lado
de fora.

Ou seja, desde Original Campo Limpo, referência a um dos maiores bairros de Feira, até a capital paulista, que talvez seja a sua outra casa do Norte, o poeta vai reinventando suas pátrias. Ranieri lembra que, por sua vez, a Chapada Diamantina seria também Pasárgada relida: 

vou-me embora pra chapada
vou-me embora pra chapada
vou-me embora pra chapada […].

Sertão 

Além de Dorival Caymmi e do rapper Sabotage, em um percurso da canção praieira ao hip-hop, o poeta propõe uma escuta e um diálogo marcante com a canção lírico-popular brasileira, que passa ainda pelo forró, pelo arrocha, pelo samba, pelo pagodão, pela marcha de Carnaval, pela cantiga e até pelo punk, esgarçando o forte sentido de lirismo da nossa tradição poética. 
Daí que a dicção rara e por vezes sublime se misture a gírias, sotaques e palavrões, que os chamados grandes poetas convivam com os materiais poéticos mais vagabundos, e que o sentido da saudade não se preserve do elemento humorístico, cujo efeito lembra tal definição de poesia que o poeta mesmo propõe: 

não são bibliotecas: o poema — isso 
que os professores chamam 
poesia — é qualquer coisa 
vindo contra, 
abrindo espaço, 
derrubando prédios, professores, 
prateleiras, catálogos.

Pois o leitor, por outro lado, não deve esperar novos pactos nacionais  (“universais”) nesse livro marcado pela alta carga de derrisão e pela tensão, por exemplo, em torno do estereótipo do sertão criado pela cultura sul-sudestina: 

sertão é uma palavra a ser banida
do título do livro
do release do filme […].

 
Não há idealização da Bahia, de São Paulo, do sertão, do país, nem mesmo de Pasárgada. Pelo contrário, o luto das ideias mais correntes de pátria acompanha também o luto do próprio pai — ambos os significantes vêm de “pater”, e quem diz país diz também paternidade. Da presença-fantasma do pai, entre a cantiga e a elegia, ele ressurge em ditos espirituosos, lições de futebol e poesia, como em “13 lições”: 

aprendi com meu pai de 65 anos
(mesmo morto
desde os seus 62) que o poema
é quando acontece algo 
a alguém além / de mim. 

Se o luto consiste em um movimento simultâneo de investimento amoroso e desligamento em relação a um objeto perdido, Rodrigo Lobo sabe que não será possível reinventar os sentidos do “pater” em uma via de mão única. Seria preciso inventar quantas pátrias fossem necessárias, mas não sem antes fazer o luto do pai. Eis aí talvez uma possível lição política desse livro: seria preciso regressar a casa. Eis a boa notícia: ela está em todo lugar.

Este texto foi feito com o apoio do Itaú Cultural.

Quem escreveu esse texto

Victor da Rosa

É crítico literário e co-organizador da antologia 99 poemas de Joan Brossa (Demônio Negro).

Matéria publicada na edição impressa #42 em janeiro de 2021.