O autor norte-americano Nana Kwame Adjei-Brenyah (Alex M. Philip/Divulgação)

Literatura, Literatura Negra,

Derrota da ficção

Romance constrói mundo distópico em que sistema carcerário vira entretenimento, mas opta por realidade em detrimento da literatura

31out2024 • Atualizado em: 11nov2024

Em roupas de couro, armados com foices, martelos ou canecas, presos por algemas magnéticas que, sob a pele, conseguem dar comandos e executar punições em caso de desobediência, presidiários, quase todos negros, lutam uns com os outros até a morte, em estádios lotados e com transmissão ao vivo pela televisão, no programa chamado Campo de Batalha dos Superstars da Cadeia. Os gladiadores cumprem pena em condições insalubres (sob tortura, em regime de escravidão, em silêncio forçado), quando são recrutados com a promessa de liberdade caso consigam sobreviver aos combates por improváveis três anos.

O sucesso de Campo de Batalha deu origem a um spin-off chamado Vida de Elo, reality show de confinamento, nos moldes de Big Brother Brasil, que mostra o cotidiano dos lutadores, a convivência entre os presos, as alianças e tensões, a preparação para as lutas — tudo isso na longa marcha que os condenados empreendem antes de cada confronto. Campo de Batalha e Vida de Elo são os fios condutores da narrativa de Os superstars da cadeia, romance de ficção especulativa de Nana Kwame Adjei-Brenyah, traduzido por Rogerio Galindo e lançado pela editora Fósforo.

As protagonistas são Loretta Thurwar e Hamara Stacker, duas mulheres negras que são as maiores estrelas do Campo de Batalha, além de namoradas, como se vê em Vida de Elo. Ambas são apresentadas em cenas de luta. Thurwar, em seu primeiro combate, enfrenta a melhor lutadora da ocasião, chamada de Monja Melancolia, que decide se deixar matar pela novata para fugir do círculo de violência e, antes disso, ainda encontra um jeito de, durante o combate, oferecer uma formação express àquela desconhecida, dizendo como ela deve lidar com o público e até mesmo cortar o cabelo. Stacker, apelidada Staxxx (com o sufixo xxx utilizado em conteúdos pornográficos), surge já como uma estrela aclamada pela plateia, uma especialista em matar que conduz o público ao falar para a câmera coisas como “quem é a delícia que enche vocês de tesão?”.

Mais do que as personagens, na verdade, o objetivo é apresentar o sistema distópico, racista, corrupto e violento construído a partir de uma aliança espúria entre entretenimento e justiça, que transforma em dinheiro o sofrimento e a morte de pessoas negras. Os grupos escolhidos para ilustrar esse sistema são os presidiários, os executivos de televisão, o público e os militantes contrários à existência do programa. As histórias vão se desenrolando paralelamente, algumas se conectam e outras somem no meio do caminho.

A caracterização óbvia serve para reforçar a tese do livro, de que o sistema é mau

Os presidiários lutadores estão em duas cadeias participantes do programa: Angola-Hammond, liderada por Thurwar e Staxxx, e Sing-Attica-Sing, onde o protagonista é Hendrix “Escorpião Cantor” Young, que perdeu um braço já como condenado, quando era escravizado em um enorme açougue dentro do presídio.

O público é representado pelo casal Wil e Emily. Ele, desde o começo, já aparece como um grande fã de Campo de Batalha. Na luta em que a experiente Thurwar estraçalha um novato armado apenas com uma caneca, Wil fica indignado pelo mal que essa diferença de força faz ao espetáculo. Emily, a princípio, não gosta da violência dos combates de Campo de Batalha, mas se esforça para assistir como uma forma de se aproximar do marido. Ela prefere assistir à Vida de Elo e acompanhar os dramas daqueles homens e mulheres nos momentos em que não estão na arena. Em uma das muitas soluções clichês do romance, Emily vai se transformar em uma pessoa violenta por causa do que assiste na televisão.

No capítulo chamado “Conselho”, vemos uma reunião de executivos. Dos doze presentes, onze são brancos. O único participante negro está ali por ser amigo do filho do chefe. Filho esse que, durante a reunião, coloca em dúvida a amizade e reforça a ambição de ocupar o lugar do pai.

“Coalizão pelo fim da Neoescravidão” é o nome do grupo que milita contra a aliança entre sistema prisional e televisão, e que mobiliza milhares de pessoas a partir do Campo de Batalha dos Superstars da Cadeia. Eles são liderados por Nile e Mari. Numa das também muitas coincidências da história, acabamos descobrindo que Mari é filha de um antigo lutador chamado Crepúsculo, mentor de Thurwar e Staxxx, que foi assassinado.

Intencionalidade

Os presos, condenados a lutar, são os explorados, e perdem mesmo quando ganham. Os exploradores, capitalistas da televisão, são os únicos vencedores. O público é bobo e perverso e os militantes são idealistas ingênuos.

Essa caracterização, pura obviedade, serve para reforçar a tese do livro — de que o sistema é mau — ao custo de enfraquecer a força literária da história, na medida em que não se permite dar uma vida interna específica e vibrante aos personagens. Mas isso — a aposta na visão de mundo em detrimento da construção do mundo ficcional — não é um erro, e sim uma escolha. Para que não restem dúvidas da intencionalidade, Os superstars da cadeia é recheado de notas de rodapé que relacionam a cena narrada a um acontecimento histórico, real, que tem a função redundante de exemplificar a violência e o racismo do sistema de justiça dos Estados Unidos.

Quando o universo ficcional é bem construído, os leitores conseguem, além de se emocionar, construir a tese ou visão de mundo por trás da obra. Por outro lado, quando a tese recebe mais atenção do que o trabalho literário, os leitores recebem, passivos como se estivessem na escola, a teoria do escritor sobre o mundo. Daí que os bons romances educam sem querer enquanto os maus, que querem educar, vão se apagando da memória até que deles só reste decorado um slogan. Os superstars da cadeia é, infelizmente, uma vitória incontestável da realidade sobre a ficção.

Quem escreveu esse texto

Dan

Escritor brasiliense e autor de Vale o que tá escrito (DBA).

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