Literatura,
Cartão-postal da resistência
Escritor usou arquivos da Gestapo como base para romance sobre a resistência em Berlim durante a Segunda Guerra
28nov2018 | Edição #18 nov.2018Os antigos gregos manipulavam um conceito que, segundo eles, acompanhava a humanidade desde sua aurora — a noção de métis. Conceito e mito caminham juntos, pois Métis era também a primeira esposa de Zeus, aquela que o ajudou a matar o pai Cronos, até ser traída e engolida pelo marido. Com esse gesto, Zeus absorve em si toda a astúcia da deusa. Métis, portanto, é o nome da sagacidade, do desembaraço e da habilidade — muito mais jeito do que força —, mas também indica sua instabilidade, a iminência do deslize e da queda.
O romance de Hans Fallada, Morrer sozinho em Berlim, pode ser lido como um extenso comentário narrativo à métis, na medida em que conta a história de um casal que luta contra Hitler usando não a força, mas a esperteza. Fallada, pseudônimo de Rudolf Ditzen, escreveu o romance logo após o término da Segunda Guerra Mundial (1939-45), com base em dossiês dos arquivos da Gestapo resgatados pelos soviéticos.
O material lhe fora dado por seu editor, com a sugestão de que fizesse algo a partir daquilo. O autor primeiro escreveu um ensaio, “Sobre a resistência que chegou a existir dos alemães contra o terror de Hitler”, e no início de 1946 começou o romance.
Os arquivos contam a história de Otto e Elise Hampel, um casal de meia-idade que, após a notícia da morte do único filho na guerra, decidem elaborar um plano de resistência. Fallada transforma os Hampel em Otto e Anna Quangel, iniciando a história em 1940, quando Otto começa a escrever cartões-postais e deixá-los em degraus ou parapeitos em prédios de escritórios em Berlim.
“A primeira frase do nosso primeiro cartão será: ‘MÃE! O FÜHRER MATOU O MEU FILHO…’”, é o que Otto diz a Anna. “Num átimo, ela compreendeu que essa frase era uma declaração de guerra, para hoje e para sempre, e também que essa guerra envolvia dois lados; de um lado, eles, os trabalhadores pobres, insignificantes; do outro, o Führer, o partido, todo o monstruoso aparato com seu poder.”
A resistência do casal começa dentro de casa, a partir de um trauma familiar. Contudo, a resistência se espalha pela cidade, de forma habilidosa. Otto escreve aos domingos e deixa os cartões na segunda-feira, sempre no horário do almoço, deslocando-se por Berlim para melhor espalhar esse vírus da desobediência.
A instabilidade da astúcia
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É claro que a Gestapo, a polícia política de Hitler, logo passa a seguir a pista do casal, e é justamente o rastro identificado pelo delegado que dá a medida da disseminação dos cartões: um mapa de Berlim é posto na parede e cada cartão encontrado se torna uma bandeirinha vermelha, meticulosamente fincada no endereço correspondente. Assim como acontece na métis dos gregos, a astúcia dos Quangel carrega consigo a própria instabilidade. O aumento na quantidade dos cartões encontrados sugere um padrão de comportamento.
Fallada mostra uma zona sombria que reúne trabalhadores acuados, funcionários nazistas e soldados truculentos
O romance de Fallada gravita ao redor da resistência do casal, mas não se restringe a esses personagens. Pelo contrário, o narrador onisciente em terceira pessoa percorre um vasto contingente de visões, vivências e perspectivas, armando um vívido painel de Berlim durante os anos de guerra. “Alguns leitores acharão que neste livro se tortura e se morre demais”, escreve Fallada em uma nota introdutória, e continua: “A obra se refere, quase exclusivamente, a pessoas que lutaram contra o regime hitlerista; elas e seus seguidores. Entre 1940 e 1942, e antes e depois disso, muito se morreu nesse círculo. Cerca de um terço do livro se passa em prisões e hospícios, e também neles a morte era uma constante”.
Fallada mostra um mundo instável, uma constante zona sombria que reúne informantes, colaboradores, trabalhadores acuados, altos funcionários nazistas e seus soldados truculentos, dispostos a qualquer atrocidade.
Ao ser redescoberto pelo mercado editorial (a partir da primeira tradução para o inglês, em 2009), o romance de Fallada modifica a percepção que se tem da literatura que veio antes e depois de seu surgimento. Morrer sozinho em Berlim se posiciona lado a lado com outros romances anteriores que procuraram dar conta do submundo da metrópole, como Berlin Alexanderplatz, lançado em 1929 por Alfred Döblin, ou ainda Os sonâmbulos (1930), de Hermann Broch.
Comparado com a perspectiva mais panorâmica de Broch, por exemplo, o romance de Fallada ganha em alcance e força estética, muito por sua permanente tensão e habilidade em manter o destino do casal Quangel indefinido até o último momento.
Ele também reorganiza a literatura que veio depois, especialmente aquela que se convencionou chamar “literatura dos escombros”, Trümmerliteratur. Seu representante mais conhecido é Heinrich Böll, autor do romance O anjo silencioso, entre outros, e que em muitas de suas obras retrata a destruição da Alemanha durante a Segunda Guerra.
Morrer sozinho em Berlim impressiona pela contundência e permanência histórica de seu tema — a resistência contra o autoritarismo que deve ser feita desde o mínimo gesto. E também pela força do estilo e da narrativa, com iguais medidas de acuidade psicológica e suspense. Percebem-se toda a urgência que Fallada sentia diante do material da Gestapo e suas hesitações acerca do melhor tratamento narrativo para o dossiê do casal, condições muito bem examinadas no posfácio de Almut Giesecke.
O romance se tornou uma espécie de testamento de Hans Fallada, pois ele não sobreviveu para vê-lo pronto: semanas antes da publicação, o escritor morreu de insuficiência cardíaca em decorrência dos anos de dependência de álcool, morfina e outras drogas. Resta a obra que, com seu intrincado atravessamento de fato e ficção, nos fala tanto do passado como do futuro.
Matéria publicada na edição impressa #18 nov.2018 em novembro de 2018.
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