Literatura,

A epopeia da tradução

Mamede Jarouche traduz do árabe textos integrais inéditos no quinto volume do ‘Livro das mil e uma noites’

01dez2021 | Edição #52

Mamede Jarouche tem um quê de Sherazade. Como a narradora do Livro das mil e uma noites, que ele traduz há quase duas décadas, esse professor da Universidade de São Paulo sabe contar histórias. Jarouche já cativa os leitores desde o primeiro volume do Livro das mil e uma noites, publicado em 2005. Trouxe ao português a história da narradora Sherazade, que se safa da morte ao atiçar a curiosidade do sultão Shahriar e convencê-lo a adiar sua execução uma noite, depois outra, outra, e outra, e outra, e… O quarto volume saiu em 2012.

Foi um longo intervalo até Jarouche por fim publicar o quinto volume, que a editora Globo acaba de lançar pelo seu selo Biblioteca Azul. Mas a espera valeu a pena. A quinta parte é talvez a obra em que a erudição de Jarouche aparece de forma mais clara. O volume é dedicado à história do rei Umar Annuman, narrada a conta-gotas por Sherazade. É uma passagem ainda pouco conhecida do Livro das mil e uma noites pois as traduções anteriores a incluem apenas parcialmente. Isso porque boa parte dessas traduções se baseia em duas edições árabes impressas no século 19 no Cairo e Calcutá. “A história do Umar que está nessas versões foi drasticamente reduzida, domesticada, mutilada”, afirma Jarouche. Às vezes, ela aparece resumida em poucos parágrafos.

Pioneiro

Jarouche deparou, porém, com dois manuscritos em árabe datados entre os séculos 16 e 17 que contam a epopeia do rei Umar em detalhes. “Não quero me gabar, mas preciso dizer a verdade: ninguém tinha trabalhado com esses textos.” Ser o primeiro, porém, tem lá os seus percalços, o que ajuda a explicar os quase dez anos entre a quarta e a quinta edição. Jarouche teve de comparar manuscritos digitalizados, decifrar garranchos e verter um árabe medieval para um português prosaico. Foi só com a chegada da pandemia da Covid-19 e o tempo isolado em casa que esse professor conseguiu se concentrar. O trabalho de traduzir diretamente de um manuscrito, sem versões impressas para consultar, é digno de sua própria epopeia. Jarouche conta, por exemplo, que os escribas da história de Umar não diferenciavam os trechos em prosa dos poemas citados no corpo do texto. “É um inferno”, ri ele. Jarouche explica que teve também de decifrar os trechos truncados, confusos e contraditórios e torná-los legíveis — sem se meter demais no texto antigo. Ele conta que foi convidado para editar o texto em árabe, mas ainda não sabe se vai aceitar. O tempo sentado diante de dois monitores — um para o texto original, o outro para o português— fez ranger sua coluna. “Não sei se tenho saúde para digitar o texto do manuscrito em árabe,” diz Jarouche.

A história de Umar tem temperos que os quatro volumes anteriores não tinham. O contexto histórico é bastante particular. Os conflitos medievais entre árabes e bizantinos agora aparecem claramente. A Rota da Seda narrada por Sherazade via escribas é um trajeto de ricas interações. É também um espaço que vai além do conflito, complicando as narrativas simplistas que supõem uma separação dura entre califados islâmicos e impérios cristãos naquele período. O Livro das mil e uma noites dá testemunho das ricas trocas entre potências, com alianças e debates religiosos.

O volume mostra interações entre califados islâmicos e impérios cristãos durante aquele período

O quinto volume tem ainda outra particularidade, que é o próprio gênero da narrativa. As histórias de Sherazade são aqui curiosamente modernas. Jarouche vê, inclusive, paralelos com textos fundamentais do romance europeu, como as aventuras de Dom Quixote. Kan Makan, um dos personagens, se parece com o protagonista de Miguel de Cervantes. Como Dom Quixote, ele sai de casa para incursões. Guerreia com bandidos, trava combates. “É acompanhado de um escudeiro que é um covardão, um tipo cômico”, Jarouche diz. Parece-se com Sancho Pança, o divertido parceiro de Quixote.

Os personagens não são idênticos, é claro, e Jarouche tampouco sugere que sejam análogos. Mas as semelhanças são curiosas e apontam para uma origem tardia para as histórias de Umar. Isso levou Jarouche à hipótese de que essas noites tenham surgido como um conjunto narrativo independente — e que foram só mais tarde incorporadas ao corpus do Livro das mil e uma noites. “Parece ter sido uma história que, em certo sentido, quis rivalizar com as mil e uma noites e acabou sendo tragada por elas, desaparecendo como narrativa autônoma”, Jarouche afirma. Foi o que aconteceu, aliás, com algumas das histórias que o público costuma associar a Sherazade, como a de Aladim e Ali Babá. Essas duas narrativas, afinal, não constam dos manuscritos antigos. “O Livro das mil e uma noites tem essa coisa escravizadora. Você entra e não sai mais”, diz ele.

O ciclo das mil e uma noites tem origem oral. Noites foram absorvidas e expelidas através dos séculos. Personagens apareceram, desapareceram, mudaram. Nas palavras de Jarouche, são “textos em perpétuo estado de instabilidade”. Com base na língua e nas referências históricas, ele crê que a narrativa do rei Umar foi elaborada no século 15, provavelmente em cima de um substrato um século mais antigo — e re-elaborada desde então.

Nesse volume, Jarouche maneja de maneira excepcional o tom coloquial, não se furtando a usar termos chulos quando o manuscrito pede. Uma das histórias inclui um xingamento que não deixa a desejar aos insultos desta era do Twitter. Um personagem diz que seu inimigo é tão covarde quanto os pelos que nascem na, digamos, bunda — tão frágeis que caem quando se solta um pum. Há também o episódio sobre o patriarca cristão que produz incenso para todo o Império Bizantino a partir de suas fezes. Aparece, ainda, o califa que se diverte drogando os seus súditos.

Foram quase vinte anos debruçado sobre a obra, que a esta altura parece ser o grande projeto da carreira de Jarouche. Mas o quinto volume acaba na noite 497. O tradutor explica, porém, que o “mil e uma” do título é meio enganoso. Os primeiros manuscritos não numeravam as noites, e não havia essa preocupação. Como se fosse um modo de dizer. A obsessão com o número exato é mais recente. Jarouche não se compromete com traduzir novos volumes. Fala que pensa em um sexto, sétimo e quiçá oitavo, incorporando as histórias que aparecem nas edições impressas e não constam das traduções anteriores. Talvez seja, como a promessa feita por Sherazade, uma estratégia para enganchar o leitor.

Quem escreveu esse texto

Diogo Bercito

É jornalista e autor de Vou sumir quando a vela se apagar (Intrínseca).

Matéria publicada na edição impressa #52 em outubro de 2021.