Literatura Negra,

Uma rasteira afrofuturista

Em coletânea de crônicas, Kalaf Epalanga parte de Lélia González e propõe a expansão do ‘pretuguês’ para além do Brasil

27nov2023 | Edição #76

Qual o futuro da língua portuguesa? Para Kalaf Epalanga, ele só pode ser negro. Em seu Minha pátria é a língua pretuguesa, o músico-escritor reúne crônicas publicadas nesta Quatro Cinco Um, no jornal digital Rede Angola e nos seus dois livros de crônicas publicados em Portugal, Estórias de amor para meninos de cor e O angolano que comprou Lisboa (por metade do preço). Os temas vão de música e paternidade a política e racismo, permeados sempre pela experiência cosmopolita do próprio Epalanga, angolano nascido em Benguela que viveu por muitos anos em Lisboa e agora é radicado em Berlim. Por sua história como membro da banda Buraka Som Sistema, cofundador do selo lisboeta Enchufada e escritor, participante dos circuitos internacionais das feiras de literatura, os textos são marcados por deslocamentos, viagens e sensações de desterro e aterro. Ao mesmo tempo, são quase como guias de um irmão mais velho, cheios de referências para conhecer melhor as culturas negras mundo afora.


Minha pátria é a língua pretuguesa, de Kalaf Epalanga

A vivência diaspórica de Epalanga tem desdobramentos nítidos: um é que, mesmo quando em Berlim, ele acompanha e comenta fatos não só na Alemanha, mas nos Estados Unidos, Brasil, Portugal e, claro, no seu país natal e arredores, por vezes a partir de conversas com amigos ou pelo que soube no noticiário. Por outro lado, há uma busca constante por um lugar de conforto, seja a Bahia do seu amigo Quito Ribeiro — amizade explorada literariamente no seu romance Também os brancos sabem dançar —, ou Angola, onde encontra certa paz, seja nas visitas à família, nas festas de kuduro e kizomba ou nos debates sobre a “angolanidade”.

Além do aconchego, o Brasil é grande fonte de inspiração por nossa música (de onde tira vários dos títulos das crônicas selecionadas) e pelo pensamento de nossos intelectuais. Epalanga conta que a primeira vez em que ouviu o termo “pretuguês” foi em 1988, por meio da obra de José Luandino Vieira e do avô, Faustino Epalanga, dois homens a lhe apresentar Lélia González. É a partir da intelectual mineira que ele formula a sua teoria para o futuro afro da língua portuguesa. Seu avô dizia que o português era “espólio de guerra” da colonização.

O texto de Epalanga tem o ritmo marcado por palavras usadas em Angola e Portugal

Se a imposição da língua é o sinal mais forte de uma dominação forçada, ela pode ser também subvertida a partir da incorporação de cosmologias e formas de falar ligadas a outras línguas locais, como o kimbundu, kikongo e umbundu de sua terra natal — ou, por que não, o tupi de cá. O texto de Epalanga tem o ritmo marcado por essas palavras usadas em Angola e Portugal, como mujimbo, cambuá, fixe, além de gírias como kota, revú, patar.

Apesar da carreira transnacional, vale ressaltar a posição do artista em Angola como parte de uma geração — junto a nomes como Ondjaki e Djaimilia Pereira de Almeida, ambos colunistas desta revista — que representa mudanças, seja na literatura ou na música. Se essas duas expressões artísticas têm sido as mais importantes do país desde as lutas por independência nos anos 60 e 70, o lugar do músico-escritor mostra também as transformações pelas quais passaram. Isso se dá tanto pelo maior contato com a antiga colônia (ele também faz parte do grupo de angolanos que se mudou para Portugal fugindo das guerras civis do país no pós-independência), como pelas modificações tecno-políticas e da produção artística.

Ao mesmo tempo em que segue e se refere a mestres como o grupo N’gola Ritmos, cantores de canções de protesto como Fontinhas e Ruy Mingas, além de autores como Pepetela, o já citado Luandino Vieira e Viriato da Cruz, Epalanga já nasce num país tecnicamente independente, e com outras preocupações. A literatura já não importa tanto como instrumento de afirmação de uma nação, mas como fonte de denúncia da situação política local, de reconhecimento de uma nova relação com Portugal e como um modo de afirmar uma postura menos nacionalista e mais afro-atlântica. A música, no mesmo circuito, também se renova com os graves eletrônicos misturados aos ritmos locais como o kuduro, e passa a orientar o pop internacional.

É nesse ponto que ideias como o Kizomba Design Museum fazem sentido. A iniciativa de Epalanga e do artista Nástio Mosquito “dedicada à preservação da história da cultura kizomba, criada em Angola, pelos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (Palop) e sua diáspora” aportou por aqui em setembro. Durante o início da 35ª Bienal de Arte em São Paulo, o grupo promoveu três dias de cultura angolana com djs, escritores, artistas plásticos, músicos e dançarinos. Como uma Cidinha da Silva ou Emicida no Brasil, Epalanga é um articulador afrofuturista que busca propor conexões mais estreitas entre nossas culturas, sem esquecer das memórias e ensinamentos do passado.

Marca da africanização

González dizia que o pretuguês “nada mais é do que a marca de africanização do português falado no Brasil”, e a expansão dessa ideia com o angolano e seus mestres talvez seja pensar não apenas neste pretuguês aqui, mas em todas as comunidades falantes de português pelo mundo.

Como em tudo da autora, o que soa simples — por ser dito de forma original e prosaica — vai além. Inspirada na obra de Frantz Fanon e Jacques Lacan, González explorou a importância da linguagem como um instrumento do racismo. Linguagem, neste caso, não apenas como língua escrita, mas todo o “mundo de coisas” internalizadas a partir do contato da criança com a mãe. É essa, para ela, a “rasteira” dada pelo negro (e especialmente pela mulher negra) na cultura brasileira, que os fez ganhar a “batalha discursiva”. Como escreve no seminal “Racismo e sexismo na cultura brasileira”:

Quando a gente fala em função materna a gente está dizendo que a mãe preta, ao exercê-la, passou todos os valores que lhe diziam respeito para a criança brasileira […]. Essa criança é a dita cultura brasileira, cuja língua é o pretuguês.

Como demonstra a autora, a linguagem denuncia o racismo não só pelas formas de se referir a mulheres negras que trabalham como empregadas domésticas ou em textos de “brancos muito importantes” como Caio Prado Jr. É também a forma como se recalca a importância das pessoas negras na nossa cultura o que o pretuguês combate. É essa a raiz que sustenta a “pátria” além-Estados de Epalanga — que bem poderia ser mátria.

Quem escreveu esse texto

Paula Costa Nunes de Carvalho

É jornalista e doutoranda em sociologia na USP.

Matéria publicada na edição impressa #76 em novembro de 2023.