Ciências Sociais,
Ninguém fica parado
Autora norte-americana usa seu trânsito pelo mundo do rap para fazer pesquisa minuciosa em ensaio pioneiro dos estudos de hip-hop
01dez2021 | Edição #52Nem sempre o rap dispôs de podcasts e documentários em serviços de streaming para contar sua história. Na fase inicial, nos Estados Unidos especialmente, o surgimento de uma intelligentsia ascendente negra ligada ao mundo do rap — como lembra Murray Forman na introdução ao livro That’s the Joint!: the Hip-Hop Studies Reader —, que começou por vezes no jornalismo e crítica musical e seguiu produzindo reflexões sobre música, racismo e cultura nas universidades americanas, foi fundamental para consolidar uma tradição que só se institucionalizaria a partir dos anos 2000 nos chamados estudos de hip-hop, cada vez mais populares em universidades pelo mundo.
Desse momento inicial, um dos livros seminais é Barulho de preto, de Tricia Rose, que ganha tradução para o português 27 anos depois de lançado nos Estados Unidos. O trabalho chega pela editora Perspectiva como o primeiro título da coleção Hip-Hop em Perspectiva, com tradução e direção de Daniela Vieira, professora da Universidade Estadual de Londrina, e Jaqueline Lima Santos, doutora em antropologia pela Universidade Estadual de Campinas.
Adaptado de uma tese de doutorado da professora da Universidade Brown e diretora do Centro de Estudos de Raça e Etnicidade na América, o texto parte de um momento crucial para o rap: a sua transformação de um fenômeno que surge da cultura de periferias urbanas de Nova York em um produto multimilionário da indústria musical. Nessa transfiguração, a autora capta problemas cruciais para desenvolver sua discussão sociológica, reunindo grandes temas como a desindustrialização e a financeirização nas grandes cidades a partir dos anos 70 e a pauperização da classe trabalhadora negra; a intersecção de lutas por igualdade racial e de gênero; racismo reproduzido tanto por agentes do Estado como do mercado privado de música; as dificuldades em reconhecer as qualidades artísticas do rap não apenas por suas letras, mas também por suas inovações tecnológicas e musicais. Mas a grande sacada de Tricia Rose é, sem dúvida, a forma como faz isso – e, não à toa, Barulho de preto se tornou um clássico que é referência para diversos documentários e livros bem posteriores, como a série Hip-Hop Evolution, lançada em 2016 na Netflix.
Toda a discussão de Rose é calcada em sua pesquisa minuciosa e em seu trânsito pelo mundo do rap. Entrevistas com artistas como Salt (do Salt-N-Pepa), MC Lyte, Kool Moe Dee, Daddy-O, além de produtores, executivos de gravadoras e advogados de direitos autorais, dão carne e osso à sua argumentação. Essa exposição, longe do pedantismo, pode ser lida como uma história sofisticada do período inicial do rap nos Estados Unidos.
Foi Rose uma das que expuseram, por exemplo, a política racista ligada ao público do rap, recordando sua própria história ao ser quase barrada na entrada de uma casa de shows por estar com uma lixa de unhas na bolsa, além das diferenças milionárias de cobranças de seguros para a realização de shows de rap em comparação com outros gêneros, como rock e metal. Lembra também das controvérsias na briga por direitos autorais dos samples, destacando que o principal item aproveitado de outras gravações pelo rap são as batidas de bateria, utilizadas para os beats. Ressalta os meandros das complexas discussões entre rappers mulheres, por vezes usadas pela imprensa mainstream branca para atacar rappers homens.
Crítica mainstrean
Apesar da pouca interlocução que a autora dizia ter, na época, com outros acadêmicos que pensavam o hip-hop, uma conversa que fica evidente no livro é com a crítica do rap feita nos jornais e revistas da época — o que faz lembrar, também, a qualidade da crítica cultural surgida com aquela intelligentsia ascendente negra (por sua vez, herdeira dos Movimentos dos Direitos Civis). Nomes como Greg Tate, Nelson George, Henry Louis Gates Jr., Arthur Jafa e Sally Banes são alguns dos evocados pela autora. Ela por vezes discorda, apresenta contrapontos aos seus argumentos, mas em evidente diálogo com o grupo que representava uma alternativa aos críticos de jornais mainstream como o New York Times e, especialmente, o Los Angeles Times. Diários como o Village Voice, local de Nova York, e a revista The Source, foram veículo de diversas discussões sobre as comunidades negras que extrapolavam limites do senso comum. A partir da música e de outras artes, havia uma proposta de reeducação do imaginário dos leitores não só por parte dos próprios produtores culturais, mas também desses críticos, recontando a história dos Estados Unidos como uma história negra, muito diferente do que se aprendia nas escolas e via Hollywood.
A autora expôs a política racista ligada ao público do rap recordando sua própria história
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Essa relação com a mídia hegemônica e não hegemônica é ponto fundamental para as reflexões de Rose já que, como ela lembra, “a marg(em)(inalidade) do rap está representada na reação contraditória que recebe na grande mídia estadunidense e na cultura popular. O rap é ao mesmo tempo parte do texto dominante e, ainda assim, está sempre nas margens desse texto; apoiando-se e comentando o texto do centro e sempre atento à sua proximidade com a fronteira”. Nesse caso, a “grande mídia” tem posições análogas às dos grandes donos de poder e dinheiro contra os quais o rap se insurge.
Vale destacar também a importância de Barulho de preto para os estudos sobre interseccionalidade, pensada, como propôs Patricia Hill Collins anos depois, como uma prática crítica. Ao analisar detalhadamente algumas letras de grupos como Salt-N-Pepa e Queen Latifah e discutir com mc Lyte e Salt a forma como o machismo interferia em seus trabalhos, Rose mostra o pensamento interseccional em ação no trabalho das artistas, ainda que não em sua completude, pois não chega a abranger por exemplo a produção de rap em outros países e em condições ainda mais dominadas. Mas nota a corda bamba das mulheres negras cantoras de rap que se solidarizavam com seus colegas homens, ao mesmo tempo que recusavam suas atitudes misóginas; a busca por não serem isca da mídia mainstream ao fazer suas críticas aos homens e, além disso, a recusa de se identificarem como “feministas” devido ao imaginário, ainda mais presente àquela época, de um movimento de mulheres brancas.
Há também um diálogo forte de Barulho de preto com trabalhos contemporâneos sobre música popular e negra que destacam a importância de pensar em inovações musicais não apenas como frutos de um “virtuosismo técnico” ou de operações extremamente complexas na estrutura melódica e harmônica — e aqui é impossível não lembrar a herança do já saudoso maestro Letieres Leite, que deixou um pouco de sua metodologia registrada no livro Rumpilezzinho: laboratório musical de jovens (editado pela LeL Produção Artística). As subversões nos modos de gravação do rap (aproveitando-se de vazamentos de som de um canal para o outro, por exemplo), a evocação de memórias negras através dos samples de discos antigos e a renovação, através de manipulações digitais, de “primazias musicais negras” são algumas das invenções que reatualizam esse legado de raízes tão profundas, mas que não fica parado (para lembrar o clássico funk de Amilcka e Chocolate com dj Marlboro, “Som de preto”).
Cá para nós, o desafio é aproveitar as reflexões levantadas por Rose sem deixar de considerar as inúmeras particularidades do surgimento do rap no Brasil e as diferenças das formações raciais nos dois países. Esse é o caso, inclusive, do trabalho da tradutora Daniela Vieira sobre Emicida, que também articula posições contraditórias que o rap negocia no circuito midiático nacional. A tradução do livro de Rose ajuda muito a ampliar o acesso a esse texto inspirador por parte de estudantes, pesquisadores e fãs de música.
Matéria publicada na edição impressa #52 em outubro de 2021.
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