Literatura israelense,

Viver é o único remédio

A perda da memória e o apego a passados irreconciliáveis são temas do último romance de A.B. Yehoshua

26out2022 | Edição #63

“A alma contra o cérebro.” É com essas palavras que o neurologista de Tzvi Luria, protagonista de O túnel, último romance de A. B. Yehoshua (1936-2022), o encoraja a retardar o avanço de uma demência recém-diagnosticada. Dito de outro modo, é preciso que o engenheiro aposentado de 72 anos alimente a alma de experiências e, para isso, se permita, por que não?, um trabalho autônomo que reavive, a serviço do novo, seu know-how na construção de estradas em Israel.


O túnel, último romance de A. B. Yehoshua (1936-2022)

Como se vê, a demência está no cerne desse importante conflito, revelado nas páginas iniciais para fisgar (e fisga) de pronto o leitor. A doença em estágio inicial desestabiliza o cotidiano pacato de Luria. A partir daí, a pergunta que naturalmente se impõe é como ela vai impactar o curso dos acontecimentos — dos previsíveis, como o novo trabalho, aos não. Atrelada a essa pergunta há outra, se não óbvia e imediata, pertinente: a representação da demência, ou seja, as técnicas literárias mobilizadas para que a perda progressiva da memória do protagonista agregue tensão e vivacidade ao enredo que se anuncia fecundo.

E não são poucos os apuros causados pela doença. Um dos mais significativos é abordado nos capítulos sobre a festa de aposentadoria de um ex-colega de trabalho. Convidado de última hora a discursar, Luria não lembra o primeiro nome da esposa do homenageado e alude a ela apenas pelo sobrenome. Se eficaz para contornar o lapso de memória, a impessoalidade de improviso gera constrangimento junto à mulher, com quem, anos antes, vivera uma situação embaraçosa. Ela então o persegue pela festa para lhe arrancar, sem sucesso, o prenome.

Além de complicações aqui e acolá, o tratamento narrativo da demência resulta em ternura, sobretudo na relação dele com a esposa, e até humor, algo difícil nesse contexto. É o caso da solução inusitada para não esquecer a senha da ignição do carro: tatuá-la no braço. A leveza do episódio, com falas espirituosas de Luria e seu filho Yoav, deixa em segundo plano o drama que o desencadeia.

Mas o todo-poderoso narrador onisciente em terceira pessoa não permite extrair do conflito sua máxima potencialidade. Demência implica lacunas, incertezas, turvação quiçá mais bem representada na parcialidade da primeira pessoa ou até da terceira, desde que colada apenas à percepção do protagonista. A condição de Luria é de opacidade, e a desse tipo de narrador, de transparência; eis o ruído. Vez ou outra, o narrador adota um tom hipotético, mas pouco convincente, pois o propósito é mesmo totalizante. Em vez de, digamos, concluir supondo, como em “talvez a exagerada explosão com o vigia noturno tenha confundido a cabeça de Luria”, mais instigante seria mergulhar na confusão mental do personagem e tornar o leitor cúmplice desses intervalos de incertezas.

Se há certo desajuste entre o tipo de narrador e a tensão de que parte o enredo, por outro lado a força narrativa salta aos olhos. O conflito inicial leva a outro de igual ou maior relevância. Para manter a mente ativa, Luria aceita trabalhar como assistente do jovem engenheiro Maimoni no projeto de uma estrada no deserto do Neguev. Durante os trabalhos, o experiente engenheiro conclui que uma colina é entrave ao percurso ideal e propõe derrubá-la. Simples, não vivesse ali uma família palestina impossibilitada de retornar ao vilarejo de origem por razões esmiuçadas ao longo da narrativa. Resta aos palestinos permanecerem escondidos em terra hostil e sob falsos nomes israelenses. A solução de engenharia para não agravar o drama humano é escavar um túnel. Difícil será convencer a empresa estatal a viabilizar a onerosa construção.

Pode-se interpretar a narrativa como alternativa de pacificação para o conflito israelo-palestino

Contrariando o princípio de toda uma vida, Luria resolve transpor a fronteira entre o profissional e o privado e cria um vínculo quase paternal com Maimoni, que lhe confidencia traumas pessoais e segredos do pai — ex-funcionário de Luria — e ainda detalha o dilema dos palestinos da colina. Os fios narrativos se multiplicam e a trama ganha em intrigas.

Entra em jogo Ayala, de nome palestino Hanadi. Vivaz e sedutora, a jovem da família palestina se torna o centro de uma disputa velada entre Maimoni e o tenente-coronel Shibolet, reacendendo uma velha tensão entre eles. Ayala consegue perturbar até mesmo Luria, feliz em seu casamento longevo. Não bastasse a agitação do trabalho, na esfera doméstica o protagonista ainda vive por alguns dias o papel de cuidador da esposa — cenário inverso, embora temporário, daquele que a demência prenunciou. Esses e outros eventos respondem narrativamente muito bem à expectativa gerada pela única prescrição médica possível para o protagonista: viver.

Metáforas

A prosa de Yehoshua é cristalina e direta, mas nem por isso o romance é isento de metáforas. Aqui elas não estão ao rés do chão, no plano sintático, mas depreendidas do arranjo narrativo. Em visita a uma exposição de arte contemporânea no museu de Tel Aviv, Luria e a esposa conhecem uma tela de nome Ressurreição dos mortos, composta de várias figuras minúsculas que simbolizam “mortos que querem retornar à vida para voltar a se despedir dela”. Ele pergunta à esposa como saber se essas figuras representam “ex-mortos” e não apenas pessoas, e ela imagina ser devido à ausência de olhos. Intrigado, no dia seguinte, ele volta ao museu para verificar se os mortos ressuscitados são realmente cegos e nota que os olhos deles “estão faltando, ou estão cerrados, e talvez sejam de outra raça […] cujo olhar é dirigido para dentro”.

Não à toa a tela o atrai. Retornar à vida para voltar a se despedir dela pode muito bem servir de paráfrase para o percurso de Luria, que deixa a aposentadoria, reanima desejos e se permite o novo antes que a doença lhe turve a mente por completo. E como em Yehoshua o privado e o social estão entranhados, em uma metáfora que excede a trama, talvez não seja exagero interpretar essa mesma trajetória como alternativa de pacificação para o conflito israelo-palestino, já que o autor defendia a solução binacional. Sem apego demasiado à memória e com abertura para a realidade à volta, quiçá seja viável incluir o outro ao invés de tirá-lo do caminho.

Essa editoria tem o apoio do Instituto Brasil-Israel.

Quem escreveu esse texto

Wilker Sousa

Jornalista, é mestre e doutorando em teoria literária pela Universidade de São Paulo. É autor de As digitais das sombras (Patuá).

Matéria publicada na edição impressa #63 em outubro de 2022.