Literatura estrangeira,

Amor à deriva

Em livro de Marguerite Duras, a experiência amorosa se afasta da representação idílica para ser fonte de angústia contínua

01out2020 | Edição #38 out.2020

A despeito da conotação prevalentemente positiva, amar pode ser uma estranha espécie de exumação: escavação com mãos nuas nos próprios subterrâneos que traz à tona dores, aversões e desesperos. A escrita de Marguerite Duras soa entoada por essa sensação: o encontro com o vazio que invariavelmente arrasta o corpo. No romance Emily L., o amor é subtraído do campo do idílio para ser construído como algo que deixa os personagens à deriva. Não é uma deriva total, no entanto. 

Na cena inicial, a paisagem é descrita com uma “amurada que impede a aproximação, frágil e branca”, imagem que extrapola o delineamento do cenário. Nos diálogos, existe uma amurada ainda mais concreta, aquela entre duas pessoas que estabelecem uma conversa sem qualquer margem para compreensão. A amurada invisível indica uma aproximação impossível: a menor distância entre duas pessoas ainda é enorme. 

O enredo de Emily L. é sucinto. Um dia de verão num balneário francês, dois personagens conversam num restaurante enquanto são invadidos pelo seu entorno. A representação da angústia e o tom comedido sugerem uma contradição formal também verificada no teor do texto: olhos que veem sem olhar, passado que não passa e que volta para infligir sofrimento. 

A permanência das dores interfere no andamento desse texto sem linearidade e de tempos verbais instáveis. Na tradução, a abertura se dá com passado mais-que-perfeito, as narrativas paralelas são construídas no passado imperfeito e os diálogos dos personagens centrais são no passado perfeito, com rubricas que soam como didascálias (instruções presentes em textos de peças teatrais) e conjugadas no presente. O resultado é um ritmo truncado e seco alternado com trechos fluentes e líricos.

Feridas abertas

A angustiada obra de Duras é extensa. Ela despertou interesse de contemporâneos como o filósofo Michel Foucault, que, com a ensaísta Hélène Cixous, entrevistou a escritora em 1975, e o psicanalista Jacques Lacan, autor de um artigo-homenagem sobre o romance O arrebatamento de Lol V. Stein. Infelizmente, muitas traduções brasileiras de Duras estão fora de catálogo. Além dessa segunda edição de Emily L., romance publicado em 1987, é possível encontrar Cadernos da guerra e outros textos (Estação Liberdade, 2009), O amante da China do Norte (Nova Fronteira, 1992) e O amante, cuja tradução de Denise Bottmann ganhou nova edição pelo selo Tusquets da Editora Planeta este ano. O último é um potente e perturbador relato sobre a juventude da escritora, nascida na Indochina (hoje Vietnã), então colônia francesa. A primeira página dessa obra traz uma frase que comprime certo tipo de dor presente em muitos textos da autora, o de nem sequer poder nomear o perene e difuso sofrimento advindo do deslocamento: “Muito cedo foi tarde demais em minha vida”. 

Duras também escreveu peças de teatro e roteiros de cinema, sendo um deles Hiroshima mon amour, dirigido por Alain Resnais em 1959. O filme é aberto com imagens da destruição da cidade japonesa e um delicado monólogo que repete algumas vezes as frases “você está me matando, você me faz bem”. Junto ao trecho de O amante, esse fragmento enriquece a leitura de Emily L., porque eles parecem exprimir feridas que a francesa insiste em tangenciar e o movimento de tentar transformá-las em palavras, como se a escrita autorizasse uma ligeira agência diante desse prazer que também pode matar. 

A vida nas colônias faz da narradora a portadora de uma singularidade dilacerante

Emily L. começa pelo medo. Um medo insensato, sem objeto definido e incongruente com o tranquilo cenário do balneário. A narradora conta ao companheiro o diagnóstico para esse espanto constante: “Foram as colônias, a infância lá e o álcool. Que não era nada, mas que nunca passaria inteiramente”. O estatuto de “nada” não atenua nem incita o arquivamento apaziguador da experiência dolorosa. A vida nas colônias faz da narradora a portadora de uma singularidade dilacerante, pela falta de lugar e pela impossibilidade de contar com referências compartilháveis: “Digo que eu não podia ser igual aos franceses da França depois dessa infância”. 

Outra interferência no cenário é feita por um casal inglês, bebendo no mesmo restaurante onde estão a narradora e seu companheiro. O Capitão e sua esposa chamam a atenção, sobretudo a mulher que, ao mesmo tempo, parece morrer e exalar uma notável disposição para a vida. Essa figura também está deslocada, distante da mesa do restaurante, imersa em si enquanto olha o chão, bebe uísque e chama pelo cachorro de estimação morto. O diálogo truncado e estranho entre os personagens centrais abre espaço para a história da inglesa, a única nomeada no romance — os outros são chamados pelos respectivos ofícios, enquanto o casal é somente “eu” e “você”. A narrativa retrospectiva construída para relatar a vida dessa estrangeira mostra que foi o jovem caseiro que trabalhava para o casal que dá o nome de Emily L. à inglesa. Ele a chama assim depois de se apaixonar por ela, no momento em que lê os poemas escritos por ela.

O nome que dá título ao romance, portanto, sucede a escrita poética, ofício que sempre desagradou ao Capitão, já que se sentia incapaz de entender os escritos da mulher. Ele sofre por não ser a única coisa digna de devoção da vida da esposa e se orgulha do fato de ela ter raízes nobres. É como se ele se agarrasse no que desponta na superfície e Emily L. se perdesse na “sombria exaltação da vida interior”. Aqui está um traço intrigante do romance: a solidão das mulheres coexiste com uma liberdade tortuosa por serem inatingíveis e inacessíveis, enquanto os homens são submetidos pelo desejo de compreendê-las e dominá-las por inteiro.

“Escrever é isso também, sem dúvida, é apagar”, diz a narradora sobre coisas que, quando convertidas em texto, deixam de doer. Em outro diálogo, o verbo é encadeado com um pronome reflexivo (“é isso o que fará o livro se escrever”), como se fosse um urgente processo de andamento autônomo. Em Duras, escrever parte das entranhas, ação movida por uma inconsciência quase embriagante que, ao mesmo tempo, ajuda a domesticar parte da força irrefreável que vem do seu interior. Volta, então, a imagem da amurada: estrutura que bordeja a rebeldia do mar para dar um contorno que a fluidez das águas não tem por si só.

Quem escreveu esse texto

Iara Machado Pinheiro

É crítica literária, doutoranda em letras pela USP.

Matéria publicada na edição impressa #38 out.2020 em setembro de 2020.