Laut, Liberdade e Autoritarismo,

Ditadura modelo exportação

Obra busca entender qual foi o papel de diplomatas do regime militar brasileiro no golpe do Chile

01jun2021 | Edição #46

Convidado a pensar a condução das relações internacionais pela ditadura, o embaixador George Maciel começou sua palestra assim: “tenho a nítida impressão, em primeiro lugar, de que, de todas as áreas do governo, a política externa brasileira foi das menos afetadas pelo regime militar de 1964, tanto na sua formulação quanto na sua execução”. Na avaliação do diplomata, com o tempo, a política externa do período teria até “evoluído positivamente” para chegar a uma “quase normalidade”.

Em março de 1994, um evento no Rio de Janeiro reuniu Leonel Brizola, Roberto Campos, Franco Montoro, Márcio Moreira Alves e outros personagens que colaboraram com ou lutaram contra a ditadura brasileira. Intitulado “1964 – 30 anos depois”, os palestrantes consideraram, com a distância do tempo, as consequências do regime militar na política, no direito, na economia, na cultura e na sociedade brasileira. 

Convidado a pensar a condução das relações internacionais pela ditadura, o embaixador George Maciel começou sua palestra assim: “tenho a nítida impressão, em primeiro lugar, de que, de todas as áreas do governo, a política externa brasileira foi das menos afetadas pelo regime militar de 1964, tanto na sua formulação quanto na sua execução”. Na avaliação do diplomata, com o tempo, a política externa do período teria até “evoluído positivamente” para chegar a uma “quase normalidade”.

A tese de que o Itamaraty teria passado incólume ao autoritarismo do regime militar brasileiro persistiu para além do fim do regime e ainda consta em livros sobre a política externa brasileira. Além de não corresponder aos fatos, essa tese impossibilita uma análise crítica do autoritarismo que persiste nas instituições e na circulação de ideias no Brasil. 

Em História da política exterior do Brasil, de Amado Cervo e Clodoaldo Bueno, a política externa do regime militar parece “até esquerdista” em comparação com a política doméstica. Além de não corresponder aos fatos, essa tese impossibilita uma análise crítica do autoritarismo que persiste nas instituições e na circulação de ideias no Brasil.

Alguns estudos acadêmicos e jornalísticos recentes têm questionado a tese do insulamento do Itamaraty durante o período militar. Diplomatas foram peças-chave no sistema de coleta de informações e repressão de exilados brasileiros no exterior. O Centro de Informações do Exterior (Ciex), idealizado pelo embaixador no Uruguai, Manoel Pio Corrêa, conectava o Ministério das Relações Exteriores (MRE) ao SNI (Serviço Nacional de Informações). A política externa dos governos militares atuou contra iniciativas de direitos humanos na Organização das Nações Unidas (ONU) e na Organização dos Estados Americanos (OEA), além de ter tentado arquivar todas as denúncias contra o regime na Comissão Interamericana de Direitos Humanos e na Comissão de Direitos Humanos da ONU. Atuou ainda na rede secreta de ditaduras que perseguiam dissidentes, como a Operação Condor.

O Brasil contra a democracia, de Roberto Simon, lançado recentemente pela Companhia das Letras, trata do envolvimento brasileiro no golpe que destituiu Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973, e instalou a ditadura chilena, uma das mais sangrentas da América do Sul. Baseada em centenas de documentos secretos de arquivos no Brasil, no Chile e nos Estados Unidos, sua obra de jornalismo investigativo busca entender como o regime militar exportou um modelo de ditadura além de suas fronteiras.  O livro é o resultado de uma pesquisa de sete anos, iniciada quando Simon publicou uma série de reportagens no jornal O Estado de S. Paulo em 2013 por ocasião dos quarenta anos do golpe chileno.

O livro integra a coleção Arquivos da Repressão no Brasil, coordenada por Heloisa Starling, que reúne obras que revelam a complexidade de protagonistas no período militar, como militares, políticos e juristas. Simon posiciona mais uma peça no tabuleiro da repressão: os diplomatas. Vários outros personagens aparecem no livro, como guerrilheiros, militares, políticos, empresários e jornalistas. Mas os funcionários do Itamaraty se destacam pelo próprio objeto do livro, o envolvimento da ditadura daqui com a implementação da ditadura de lá, e por sua participação no esquema de repressão ainda ser pouco conhecida.

Anticomunismo

Diferentemente de Fidel Castro, Allende chegou ao poder pelo voto popular. Mas sua promessa era a mesma do cubano: o socialismo. A versão chilena seria um socialismo de empanadas y vino tinto: uma agenda de reformas estruturais, expropriação e estatização de empresas, reforma agrária, combate à desigualdade e moratória da dívida – tudo pela via institucional. Mas sua oposição, todavia, desde cedo trilhou um caminho oposto e a possibilidade de um golpe só teve que esperar pelas condições e pelos parceiros adequados. A campanha contra Allende começou antes da sua posse e foi agregando golpistas dentro e fora do Chile. 

O anticomunismo não era novidade no Brasil; o regime militar, porém, alçou seus acólitos à linha de frente, inclusive no Itamaraty. Pessoas como Antônio Câmara Canto, embaixador brasileiro em Santiago, e Mário Gibson Barbosa, chanceler do governo Médici, construíram a imagem de que o Chile de Allende seria uma “cabeça de ponte” do comunismo internacional, cujo alvo era o Brasil.

Diplomatas brasileiros pintavam o país do Pacífico como um oásis de guerrilheiros sedentos por exportar a revolução socialista para a região. Era uma narrativa falsa, mas com consequências concretas: tornar o Chile um inimigo e agir contra ele. Nos documentos do Itamaraty, do SNI e do Conselho de Segurança Nacional, o Chile de Allende foi se tornando uma ameaça maior, e mais próxima, do que Cuba.

A ditadura brasileira acumulava experiência em interferir na política doméstica de vizinhos. Em 1971, o governo Médici apoiou o golpe que levou Hugo Banzer ao poder na Bolívia, e se envolveu na ascensão à presidência de Juan Bordaberry, partícipe do golpe uruguaio de 1973.

No Chile, o regime brasileiro agiu desde o início no subterrâneo. Na contabilidade de Simon, o Brasil conspirou uma sublevação com militares, empresários, jornalistas e grupos de extrema direita chilenos, como o Patria y Libertad; vigiou e se infiltrou nas redes de exilados em Santiago; tentou isolar diplomaticamente o governo de Allende. Segundo informações coletadas pelo embaixador de Allende no Brasil, Raúl Rettig, militares brasileiros tentaram recrutar membros da comunidade chilena no país para lançar uma guerra insurgente por lá. 

Na linha auxiliar da empreitada, empresários e jornalistas brasileiros se somavam às conspirações. Em encontros com seus colegas chilenos da Sociedad de Fomento Fabril, a Sofofa, empresários brasileiros da Confederação Nacional das Indústrias se ofereceram para financiar atividades contra a democracia chilena. Os veículos de imprensa que tinham textos censurados no Brasil publicavam artigos abertamente favoráveis a um golpe no Chile. Uma semana antes do 11 de setembro de 1973, um dos líderes do Patria y Libertad publicou um artigo no jornal O Globo no qual justificava abertamente uma reação contra a democracia chilena.

A ditadura brasileira enviou ao Chile uma missão de cooperação no campo da repressão

A ditadura brasileira estava muito bem informada do passo a passo do golpe de 11 de setembro. Após a morte de Allende e a tomada do La Moneda, sede da Presidência da República chilena, o governo Médici agiu rápido. Além de ser o primeiro país a reconhecer o novo governo, manifestação inequívoca de apoio diplomático, o Brasil foi seu primeiro parceiro econômico e lhe ofereceu empréstimos de 220 milhões de dólares. Médici também enviou mais de cinquenta toneladas de alimentos a Santiago, a pretexto “humanitário”. 

Protagonismo brasileiro

Por que a ditadura brasileira atuou tão energicamente, ainda que nos subterrâneos, contra a democracia chilena? Na interpretação de Simon, foi por duas razões principais. Primeiro, o Chile de Allende foi imaginado como uma ameaça à segurança nacional do Brasil, isto é, como um polo de comunistas perto demais das nossas fronteiras. Segundo, porque o Chile teria se tornado o principal refúgio de exilados brasileiros e seria necessário continuar a combater inimigos do regime, agora além-fronteiras.

Um dos argumentos centrais do livro é o protagonismo brasileiro no seu envolvimento com a queda da democracia chilena. Simon refuta a hipótese que a ditadura brasileira simplesmente respondia a comandos de Nixon e Kissinger. Seu argumento destaca os interesses próprios do Brasil no golpe, por mais que houvesse coincidência com os estadunidenses. Em um capítulo que resgata a visita de Médici a Washington em 1971, Simon relata a simpatia mútua entre os presidentes, as trocas de informações de inteligência e o alinhamento político quanto ao golpe, mas também mostra as relações próprias que o Brasil tinha estabelecido com os militares chilenos que tramavam a queda da democracia de lá.

Após o golpe, a cooperação entre os regimes militares brasileiro e chileno seguiu intensa década de 1970 adentro. Em um dos capítulos mais marcantes do livro, Simon reconstrói como, logo após o golpe, os militares transformaram o Estádio Nacional em uma prisão de quase 40 mil detentos, chilenos e estrangeiros. Pouco mais de um mês após o golpe, a ditadura brasileira enviou ao Chile uma missão de cooperação no campo da repressão. Chefiada pelo coronel Sebastião Ramos de Castro, do SNI, há relatos de que os agentes brasileiros participaram das sessões de tortura e outras violações de direitos humanos em um momento que seus colegas chilenos ainda aprendiam as técnicas.

A ditadura brasileira fez lobby a favor da ditadura chilena junto a outros países, e diplomatas brasileiros chegaram a escrever parte de discursos de seus pares no país vizinho. As agências de inteligência trocaram muitas informações, e agentes da DINA, a polícia política chilena, foram treinados na Escola do Serviço Nacional de Informações. O comércio entre os dois cresceu, principalmente em áreas como armamentos. Com a ascensão de Pinochet o Brasil se tornou um dos principais fornecedores de armas ao Chile, em um momento em que os Estados Unidos já tinham cessado este tipo de troca comercial com Santiago em razão das violações de direitos humanos. 

As relações entre as ditaduras só começaram a arrefecer com a chegada de Geisel ao poder e seu projeto de distensão controlada. Estar ombreado com um símbolo do autoritarismo como Pinochet era incongruente com o novo discurso. No decorrer dos anos após o golpe de 1973, o Chile foi se tornando sinônimo de violações de direitos humanos. Ativistas e ONGs levaram casos contra o país para a ONU e a OEA, e no decorrer da década de 1970 a linguagem dos direitos humanos começou a aparecer em mais manchetes em jornais do Ocidente. 

Geisel recusou vários convites de Pinochet para visitá-lo. Também solicitou que o chileno não comparecesse à sua posse em Brasília. Em vão. Os laços entre as duas ditaduras eram fortes e o chileno precisava de imagens de legitimidade. Se o brasileiro quis evitar fotos que o associassem ao que se tinha de mais autoritário na região, os arquivos revelam uma história de intimidade.

O livro de Simon é mais um passo para conhecermos melhor como a diplomacia do período militar não esteve desconectada com o pensamento e as práticas repressivas da ditadura; pelo contrário, fez parte dela. O Brasil contra a democracia nos relembra o tanto que ainda temos que conhecer sobre o passado, assim como do que resta dele no presente.

 

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

João Roriz

É professor na Universidade Federal de Goiás.

Matéria publicada na edição impressa #46 em abril de 2021.