Laut, Liberdade e Autoritarismo,

Palavra em pólvora

Livro analisa como as constituições de cada nação possibilitam e restringem distintas formas de poder

01mar2023

Brasília, 8 de janeiro de 2023. Um homem envolto na bandeira nacional exibe a Constituição de 1988 após invadir e depredar as principais instituições da República. De costas para o stf, ele levanta o exemplar original furtado acima da cabeça, gesto festejado pela multidão bolsonarista. O signo gestual que marcará a memória do ataque golpista à democracia brasileira mimetiza outro, mas cujo significante é seu oposto: em 5 de outubro de 1988, Ulysses Guimarães ergueu a recém-promulgada Constituição em celebração à democracia conquistada após a ditadura militar.


A letra da lei oferece uma história mais conturbada e instigante sobre as constituições

O livro A letra da lei sai em português em um momento de profusão de estudos dedicados à democracia e contribui para a compreensão das constituições como um dos seus principais sustentáculos. Em vez da abordagem comum das constituições como produto de demandas populares ou epifanias de processos republicanos, a historiadora da Universidade de Princeton oferece uma história mais conturbada e instigante. “Uma constituição, como um romance, inventa e conta a história de um povo.”

Linda Colley expõe paradoxos e dissonâncias das histórias constitucionais explorando a narrativa emotiva de personagens reais. Uma chave para compreender a obra é o enquadramento das constituições como “tecnologia política”, segundo a qual elas não apenas listam direitos e deveres, organizam as instituições públicas e delegam poderes, mas também são uma ferramenta do Estado moderno para recrutar cidadãos, consolidar territórios e projetar um imaginário nacional.

A autora faz um inventário das constituições de meados do século 18 até a Primeira Guerra Mundial e inaugura o livro não com a experiência estadunidense, marco comum da ideia de constitucionalidade, mas com Pasquale Paoli, corso que redigiu um texto constitucional como forma de resistir às invasões genovesa e francesa no século 18. Nos capítulos seguintes perfilam experiências de lugares distantes entre si como Haiti, Japão, Suécia, França, Tunísia, Império Otomano, Índia, África do Sul e Libéria. Nesse exercício, a suposta excepcionalidade dos Estados Unidos (frequente na historiografia constitucional) torna-se paroquial: a empreitada constitucional estadunidense deixa de ser completamente original e passa a fazer parte de um contexto global.

Há uma associação íntima do momento constitucional com conflitos armados e violência

A arma, o navio e a pena — título do original em inglês (e que se perdeu na tradução daqui) — são artefatos que Colley emprega para escavar a história. Ao responder como esse novo tipo de documento jurídico escrito se tornou um marco crucial da modernidade política ao redor do mundo, ela também mostra como sua difusão além-mares foi associada a conflitos armados. Essa é uma das diferenças do livro: ele não condiciona o momento constitucional a um suposto espírito republicano que ronda historiografias liberais. Ao contrário: há uma associação íntima das constituições com a violência.

Nesse espectro, houve nuances entre o idealismo constitucionalista ligado a ideias de progresso e imposições político-ideológicas. Entre as 67 imagens do livro está a de Sadiq Bei com a primeira constituição escrita a vigorar em país muçulmano, fazendo alusão ao retrato de George Washington com edições dos Federalistas. É simbólico da apropriação das ideias liberais que circulavam globalmente, mas tinham origem bem marcada. Também de uma “modernização defensiva” por países como a Tunísia, que buscavam autonomia política.

Como tecnologia política em um momento de grandes pressões internas e externas, as constituições dão formato aos Estados, assegurando-lhes recrutas e incentivos para batalhar alhures. Após os dezoito meses em que Catarina, a Grande trabalhou na redação da Nakaz, um texto proto-constitucional, seu resultado não se limitou a garantias benevolentes aos seus súditos, mas a qualificou como interlocutora de um vocabulário de modernidade política que circulava na Europa, além de garantir soldados para batalhas e poderes imperiais sobre o amplo território do Império Russo.

Frente a guerras cada vez mais frequentes, violentas e complexas, os governantes concederam mais direitos a seus cidadãos como compensação pelo engajamento militar — como diz a tese de Max Weber, que inspira um ponto central do livro. Assim, os sacrifícios nos conflitos caminharam ao lado dos direitos dos cidadãos: muitas constituições até meados do século 19 traziam uma combinação de direito a voto e obrigatoriedade do serviço militar — em geral destinados à população de sexo masculino, tendência que se tornou padrão no liberalismo constitucional exportado pelo imperialismo.

Constroem-se, assim, paradoxos históricos: se às vezes as constituições têm o poder de consolidar conquistas progressistas nos direitos, em outras reafirmam ou até criam desigualdades. A história de Pitcairn, ilha do Pacífico Sul entre a Nova Zelândia e o Peru, é uma exceção que prova a regra. Foi lá que se proclamou a primeira constituição em que mulheres tinham direito ao voto em eleições para o chefe do Executivo. O que possibilitou isso foi uma mistura da ausência de intenções de se estabelecer um exército com distância suficiente de uma maior influência dos centros de poder. Já o Japão, sob pressões intervencionistas, teve outro destino: a Constituição Meiji de 1889 negou o direito ao voto às mulheres e foi seguida por legislações ainda mais restritivas inspiradas no direito alemão e austríaco.

Consequências devastadoras da seletividade de direitos também aparecem nas histórias das constituições estaduais norte-americanas, que serviram ao genocídio dos povos originários. Elas excluíam indígenas dos mapas territoriais — o que inspirou a violência colonial em lugares como Austrália e Nova Zelândia como se somou a justificações pseudo-científicas do darwinismo social no século 19.

A tensão entre as ideias de progresso liberais e o risco da instrumentalização de constituições para a discriminação ou o imperialismo aparece nos projetos de personagens citados no livro. James Africanus Beale Horton, entusiasta do poder “civilizatório” da modernização tecnológica dos anos 1860, se opunha à intervenção branca e defendia o autogoverno dos povos da África Ocidental. Suas viagens pelo continente sugeriam que o melhor seria criar comunidades políticas com legislativos bicamerais para eleger reis entre locais. Originário de Serra Leoa, onde seus pais viveram após serem resgatados de um navio traficante pela Marinha britânica, ele usava como referência a experiência da Libéria, inspirando-se na república independente constituída por negros norte-americanos refugiados, ainda que tivesse críticas à exclusão de negros africanos nativos (diferenciados dos colonos) pela Constituição de 1847.

Sentidos constitucionais

O livro oferece uma abordagem humanizadora que desnaturaliza a narrativa liberal predominante sobre as constituições, revelando que elas agem como estabilizantes que ao mesmo tempo possibilitam e restringem diferentes formas de poder, entre exploração e emancipação, dominação e autonomia. É inegável a qualidade da autora em tornar atraentes e acessíveis temas que geralmente ficam circunscritos à academia. Mas as histórias do livro servem como uma janela para sentidos constitucionais que ultrapassam seu enquadramento global e generalista — o Brasil, por exemplo, aparece pouco, e sem menção à invisibilização de negros e indígenas.

O poder das constituições vai muito além do que é visível no papel: elas se transformam, são parte do pacto social que continua a ressignificar os próprios termos constitucionais. É essa disputa de sentidos que vivemos ao lidar com os recentes ataques aos Poderes em Brasília. O que está no papel, como a previsão na Constituição do Brasil sobre o Estado Democrático de Direito, é apenas um ponto de partida para a garantia do pluralismo e da proteção de direitos — como passou a ser seu sentido nos últimos séculos. Como tecnologia política a favor desses objetivos, inclusive para superar paradoxos históricos, a força vital da constituição está em ser valorizada e ressignificada continuamente.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Adriane Sanctis

Doutora em filosofia e teoria geral do direito, co-organizou o livro Direito global e suas alternativas metodológicas (FGV Direito SP).

João Roriz

É professor na Universidade Federal de Goiás.