Laut, Liberdade e Autoritarismo,
Amar, verbo subversivo
Publicado em 1841, romance censurado da cubana Gertrudis Gómez de Avellaneda é pioneiro da literatura abolicionista e feminista
15ago2024Um romance que contém “uma doutrina subversiva ao sistema de escravidão na ilha”, e que é “contrário à moral e aos bons costumes”. Essa foi a opinião de Hilario de Cisneros, Censor Regio de Imprenta, ao censurar Sab, de Gertrudis Gómez de Avellaneda (1814-1873) na colônia espanhola. Publicada primeiro na Espanha, em 1841, e quase quatro décadas depois em Cuba, a história é considerada um clássico na terra natal da autora.
O censor colonial acertou, a obra é subversiva. Primeiro romance de Avellaneda, Sab se soma tanto ao que se tem chamado de literatura abolicionista da época quanto à feminista. Escrita nos quadros do romantismo do começo dos oitocentos, denuncia a injustiça da escravidão e das limitações impostas às mulheres. Segundo Catherine Davies, professora do instituto de línguas, culturas e sociedades da Universidade de Londres, é o único romance feminista-abolicionista publicado por uma mulher na Espanha ou em Cuba durante o século 19.
A história, que se passa no início daquele século, tem como paisagem uma plantação de cana-de-açucar e narra a impossibilidade do amor de Sab por Carlota. Ele é um dos homens escravizados pela família dela. Filha de aristocratas locais, Carlota desconhece os sentimentos de Sab. A relação se complica logo nas primeiras páginas, com a chegada do noivo de Carlota, Enrique Otway, comerciante inglês interessado na fortuna da família. Teresa, prima órfã de Carlota, apaixona-se por Enrique e escuta as confidências de Sab. Martina, indígena que sofre as agruras da exclusão social, tem uma relação maternal com Sab e completa o rol de personagens centrais. Os afetos, a trama e os vínculos sociais do romance mostram as tensões na ordem colonial cubana, marcada por raça, gênero e classe.
Os vínculos sociais mostram as tensões na ordem colonial de Cuba, marcada por raça, gênero e classe
Avellaneda desafia tanto os cânones literários quanto o tecido social de seu tempo ao posicionar um escravizado como herói romântico trágico. A figura de Sab inverte o papel típico reservado aos escravizados. Ele tem uma nobreza de origem, comportamento e alma. A autora posiciona-o em contraste com personagens brancos: a eloquência de seu amor por Carlota defronta a mesquinhez de seu rival, Enrique. A educação que teve (de uma mulher) o capacitou não apenas a ler e escrever, mas também a postular questões sobre a vida e a se expressar com desenvoltura.
O título do romance entrega a importância do nome do protagonista. Sab renega a denominação cristã que lhe foi dada, Bernabé. Distancia-se, assim, da prática colonial de batizar africanos e descendentes com nomes bíblicos e ocidentais. O nome Sab evoca raízes africanas. Quem o escolhe é sua mãe, não aqueles que o escravizam. Apesar de pouco mencionada no romance, ela é referência para o protagonista. “Minha mãe veio ao mundo em um país onde sua cor não era um sinal de escravidão, […] nasceu livre e princesa”. Todos aqueles abduzidos da costa do Congo reconheciam sua condição de majestade, lembra Sab. “Mas princesa em seu país, foi vendida neste como escrava”. Se nomear é um meio de fazer existir no mundo social, Sab subverte o colonial ao aludir à sua ancestralidade africana. Sua liberdade foi subtraída pelos “traficantes de carne humana”, mas a preservação da memória promete resistência e esperança.
A estabilidade afetiva de Sab contrasta, por sua vez, com a ambiguidade da sua identidade. Ao apresentá-lo, a escritora tensiona a ordenação do mundo em preto e branco da sociedade colonial, nos fazendo reconsiderar a arbitrariedade de classificações raciais. Sab “não parecia um criollo branco, também não era um negro nem podia passar por descendentes dos primeiros habitantes das Antilhas”. As feições mestiças, assim como a capacidade retórica, confundem outras personagens. “Então você é mulato?”, pergunta Enrique ao conhecê-lo. “Bem que suspeitei no princípio, mas você tem um ar tão pouco comum à sua classe, que logo mudei de pensamento.”
Insurreição
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A subversão da narrativa cogita, mas não resulta em apelo à insurreição armada dos escravizados. Seria factível que a autora cogitasse, já que revoltas compunham o imaginário político da época. Escravizados protagonizaram em 1791, por exemplo, a Revolução Haitiana que os libertou do jugo colonial francês. O medo de novos levantes se espalhou por colônias e metrópoles. Sab contempla a violência em suas confidências a Teresa, revela que nutriu hostilidade em relação aos senhores de escravizados e confessa: “Pensei também em armar contra nossos opressores […], lançar no meio deles o terrível grito de liberdade e vingança; banhar-me no sangue de brancos”.
Mas o protagonista não escolhe o caminho da força. Sua subversão reside em como constrói relações que desafiam binarismos. Quando Teresa pergunta se ele é um dos que ambicionam a “revolução dos negros”, Sab nega, ainda que reconheça a justeza da causa. “Tranquilize-se, Teresa, porque nenhum perigo nos ameaça; os escravos arrastam pacientemente sua corrente: sei que eles só necessitam para rompê-la uma voz que grite: ‘São homens!’. Mas essa voz não será minha.”
Por um lado, como as feministas ensinam, a luta de Sab é ao mesmo tempo pessoal e política, porque suas relações afetivas desafiam, em algum grau, a ordenação colonial da vida. Por outro, ao centrar a verve antiescravagista no indivíduo, o romance deixa de fora questões estruturais. A posição de Sab o distancia de outros negros, que enfrentam condições de vida brutais e não têm voz ativa. A empatia contra a injustiça ocorre mais por suas qualidades e emoções profundas do que por sua condição de escravizado ou por inquietações sobre opressão racial. Ele “não deveria ter nascido escravo”, reflete Teresa, “o coração que sabe amar assim não é um coração vulgar”.
Avellaneda compara a escravidão com a opressão das mulheres, como lembra André Aires no posfácio da edição brasileira. O romance mostra Teresa e Carlota alheias aos seus desejos e potenciais, quase tão presas quanto Sab. Apesar das denúncias de discriminação de raça, gênero e classe, ao final do romance prevalecem a forma e as convenções estilísticas do romantismo. Cada uma à sua maneira, as personagens se adequam, sucumbindo à opressão racista e patriarcal.
A despeito disso, a primeira publicação de Sab no Brasil, com tradução de Ellen Maria Vasconcellos, traz ao público um romance pioneiro nas tradições abolicionista e feminista que marcou a produção literária da América Latina e do mundo.
Editoria especial em parceria com o Laut
O LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.
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