Laut, Liberdade e Autoritarismo,
Onde a ditadura nunca acabou
Autor entrelaça a rotina de torturas e execuções nas favelas brasileiras à transição incompleta para a democracia
01dez2024 • Atualizado em: 28nov2024 | Edição #88 dezMovimentos sociais de favelas e movimentos negros associam a contínua violência praticada por agentes do Estado nas periferias à ditadura militar. A frase “nas favelas, a ditadura nunca acabou” costuma ser empregada por ativistas para enfatizar tanto a violência cometida por militares no período ditatorial — largamente ignorada pela Comissão Nacional da Verdade — quanto a rotina jamais interrompida de torturas, desaparecimentos e assassinatos nas comunidades. O historiador e sociólogo Lucas Pedretti resgata essa frase para questionar a ideia de que o autoritarismo ficou restrito ao passado, bem como a de que apenas os dissidentes da ditadura devem ser considerados vítimas da violência estatal.
Em A transição inacabada, ele oferece uma interpretação sociológica da violência política na transição brasileira e retrata como distintos atores sociais lutaram pelos sentidos que passaram a circular depois de 1964. A história que o autor nos conta enfatiza as disputas entre ativistas e agentes da repressão a partir de suas categorias de mobilização social. Com rigor acadêmico, escrita fluida e sensibilidade política, o livro investiga como militares produziram noções para termos como “terroristas”, “subversivos” e “conciliação”, enquanto movimentos sociais elaboraram outras para “desaparecidos”, “presos políticos” e “direitos humanos”. Pedretti desnaturaliza esse vocabulário, conferindo-lhe movimento em sua fabricação social.
O livro oferece uma história social dos direitos humanos no Brasil ao analisar como a ideia adquiriu sentido na sociedade enquanto resistência à violência do Estado ditatorial. Se antes a expressão integrava o vocabulário de diplomatas ou agentes burocráticos usado em reuniões e documentos da ONU, a partir dos anos 70, movimentos sociais começam a empregá-la em denúncias da repressão. Aqui, ela ingressa no nosso vernáculo principalmente nas vozes de mulheres: mães, filhas e ativistas que enquadraram sua luta contra prisões, torturas e desaparecimentos como questões de direitos humanos.
O livro também narra a formação do discurso da “conciliação e esquecimento”, exigido pelos militares e seus apoiadores civis como condição para a transição. Desde o governo Geisel (1974-79), os militares tomaram para si a pauta da anistia e conduziram com controle e violência o processo de “abertura”. Em contraponto às demandas de responsabilização de crimes, eles propunham a conciliação baseada no esquecimento e participaram ativamente na fundação da Nova República na segunda metade dos anos 80.
Nas negociações da redemocratização, pressionaram os constituintes. Seus interesses foram resguardados na Constituição de 1988, com os dispositivos sobre tortura, anistia e o papel das Forças Armadas abrindo espaço para a impunidade dos crimes de agentes do Estado.
Mortes políticas, mortes comuns
A maior parte de A transição inacabada trata da ditadura e está lastreada em documentos de acervos de movimentos sociais e do Estado (Pedretti foi pesquisador da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro), mas o autor também mostra como as formas de violência daquele período persistem na sociedade brasileira. Seu argumento revela que os consensos produzidos na transição permitem hoje que certas mortes sejam legítimas e outras não, que alguns corpos mereçam proteção e outros não.
Mais Lidas
No início dos anos 90, o jornalista Caco Barcellos noticiou a localização de ossadas de militantes desaparecidos pela ditadura no cemitério de Perus, em São Paulo. Na época, onze moradores da favela de Acari, no Rio de Janeiro, foram sequestrados e assassinados por um grupo de extermínio composto por policiais. Em ambos os casos, as vítimas morreram de forma semelhante. E em ambos, os perpetradores eram agentes do Estado. No entanto, a sociedade e as instituições não reagiram da mesma forma, pontua Pedretti.
As ossadas da vala de Perus pertenceram a “mortos e desaparecidos políticos” e a Câmara Municipal de São Paulo instaurou uma CPI. Os restos mortais foram considerados de dissidentes da ditadura e, portanto, vítimas da sua violência política. Os jovens negros assassinados na chacina do Acari não ganharam o mesmo tratamento. Foram considerados vítimas da violência urbana e taxados de “bandidos” pela polícia. Pedretti chama a atenção para categorias de pensamento diferentes. Enquanto um imaginário considerou ilegítima a violência do Estado contra dissidentes políticos, o mesmo não se aplicou aos jovens de Acari.
Ao invés de repudiar a violência nas favelas, o regime democrático brasileiro ecoa discursos que permitem — ou mesmo estimulam — torturas, desaparecimentos e execuções nesses espaços. A fala de Afanásio Jazadji, deputado estadual mais votado de São Paulo nas eleições de 1986, ilustra esse processo: “Não admito tortura para presos políticos, mas para o bandido comum reconheço que em certos casos o policial não tem outra ferramenta que não seja a força bruta para arrancar a verdade”.
O autor se pergunta como a tortura inadmissível convive com a tortura desejável. E também resgata o outro lado dessa história: o de quem ficou de fora da reparação contra a violência estatal — os presos políticos foram assim qualificados para separá-los daqueles considerados “comuns”.
Essa estrutura de violência persiste e cresce. Certo senso comum justifica atos violentos de policiais como parte de uma política de segurança pública contra “bandidos”. Aos moradores de favelas, nem o substantivo “vítima” nem direitos humanos são concedidos. Prevalece o imaginário de que “bandido bom é bandido morto”.
A eleição de Bolsonaro em 2018 fragilizou a ideia da ditadura como coisa do passado. Sua apologia à violência, tanto como política contra oponentes quanto de segurança pública nas favelas, evidencia a incompletude da transição brasileira e a fragilidade da nossa democracia. A radicalização de parte expressiva da direita, culminando na tentativa de golpe do 8 de Janeiro, alerta que o retrocesso pode se agravar. O autoritarismo que muitas vezes associamos ao nosso passado persiste dando forma ao nosso presente.
Editoria especial em parceria com o Laut
O LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.
Matéria publicada na edição impressa #88 dez em dezembro de 2024. Com o título “Onde a ditadura nunca acabou”
Porque você leu Laut | Liberdade e Autoritarismo
Livros para desradicalizar
Das tentativas de golpe às investidas de desinformação, pesquisadores indicam mais de trinta livros para entender e combater o extremismo
OUTUBRO, 2024