

Laut, Liberdade e Autoritarismo,
Ser livre é poder escolher?
Em The Age of Choice, a historiadora Sophia Rosenfeld traça a genealogia da noção de liberdade como escolha
01mar2025 • Atualizado em: 26fev2025 | Edição #91 marComo ganhou força a ideia de que ser livre é igual a poder escolher? Atualmente, a noção de liberdade como um direito humano sustenta demandas que vão do aborto ao homeschooling (educação de crianças em idade escolar realizada em casa, pelos pais). Irrefletida no debate público, a associação entre liberdade e escolha seguia insondada pela produção acadêmica até a recente publicação de The Age of Choice: A History of Freedom in Modern Life (A era da escolha: uma história da liberdade na vida moderna, em tradução livre), da historiadora norte-americana Sophia Rosenfeld.
Segundo Rosenfeld, a associação das noções de liberdade e de escolha remonta ao século 18. E, embora os agentes e os materiais analisados no livro sejam sobretudo do Atlântico Norte, o processo é global: abrangeu da França à Argentina, dos Estados Unidos à Indonésia, da Inglaterra à Índia.

O argumento central em The Age of Choice é que a liberdade se associou à escolha a tal ponto que se tornou sinônimo de liberdade de escolher. A autora afirma que isso aconteceu porque os próprios agentes se constituíram como sujeitos e emprestaram significado ao mundo, em uma série de práticas de escolha: na religião, no casamento, na política e na ciência.
Coreografia
O consumo aparece na narrativa de Rosenfeld como a primeira instância da escolha coreografada, isto é, ensaiada e aprendida. Logo percebemos que a autora não está interessada em contar a história da escolha como faculdade, mas sim em entender como a prática, a partir do século 18, vai fazendo parte da organização da vida em sociedade, e então passa a ser tema de interesse de artistas plásticos, escritores de ficção e filósofos.
Rosenfeld mostra, por exemplo, o cuidado do promotor de leilões inglês Christopher Cock em organizar e expor os objetos selecionados, em selecionar convidados e ensinar-lhes as regras para a aquisição dos bens.
A possibilidade de comprar como modalidade de escolher se tornou um horizonte de aspirações
Em um mundo cada vez mais abundante em produtos, as compras se tornaram mais centrais e acessíveis, e o consumo passou a ser socialmente regulado — afinal, a prática apresentava um risco à manutenção da ordem social e era preciso administrá-la. Essa regulação social tornou a prática uma performance. Codificada como feminina, passou a classificar as mulheres. O aparecimento da coquete como tipo social, por exemplo, foi um efeito disso.
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Rosenfeld não ignora que o acesso aos bens era menor ou maior conforme a classe. Mas a possibilidade de comprar como modalidade de escolher e de ir às compras como modalidade de aparecer se tornou, gradualmente, um horizonte de aspirações compartilhado pelas sociedades em todo o mundo.
Consciência
No centro dessa história estão as mulheres. Rosenfeld analisa a produção de escritoras de ficção, como Helen Williams, Jane Austen e Margaret Wilkerson Sexton, e personagens femininas — como as heroínas dos romances epistolares de Émile Zola e Honoré de Balzac —, além de artefatos forjados por mulheres atuantes na defesa do voto feminino.
A análise sustenta o argumento de que a instância da consciência, a dinâmica interior da escolha — com o reconhecimento das opções, as hesitações da vontade, os dilemas do juízo — e a capacidade político-moral das mulheres ganharam formas socialmente reconhecíveis a partir do século 18. Obras de ficção trouxeram o interior das mulheres aos olhos de todos, tornando-o passível de ser perscrutado.
A percepção social da consciência como instância da escolha é objeto de um dos capítulos do livro. Para analisar como essa percepção se forma, Rosenfeld recua à Reforma Protestante. Um marco na história do cristianismo, a reforma teria aberto o domínio das ideias à escolha. Com ela, a escolha aparece como uma prática individual que deve ser livre de coerção. Gradualmente, a consciência se torna para as pessoas o domínio primeiro e último em que elas se percebem experimentando essa liberdade.
No Brasil, o casamento foi uma questão patrimonial e familiar durante parte do século 20
Rosenfeld só pode analisar a escolha íntima porque ela se materializa em objetos como os commonplace books, cadernos em que segmentos de texto eram recortados e colados. Nesses espaços de bricolagem, passagens bíblicas e demais textos religiosos eram relacionadas com outros tópicos.
A história segue, em parte, o caminho aberto pela Reforma Protestante. Compreende a secularização das sociedades europeias e, na esteira dela, a transformação do casamento de instituição religiosa em instituição civil e em um vínculo romântico.
Na França, a revolução de 1789 abriu a possibilidade de se casar sem contrair matrimônio e de dissolver o casamento por meio do divórcio. Embora no início do século 19 Napoleão tenha limitado a prática, e depois a revogado, a mudança em torno do casamento, na França e além, propiciou associar o casamento e o divórcio à decisão íntima e, em consequência, à responsabilidade individual.
Neste contexto, sociedades pós-coloniais podem tensionar a globalidade da história da escolha sobre o tema. No Brasil, por exemplo, o casamento foi uma questão eminentemente patrimonial e familiar durante parte do século 20. Mesmo neste caso, porém, a possibilidade de “equívoco” na escolha em espaços de sociabilidade, como os bailes, estava posta num cenário em que as compras e o gosto tornavam mais fácil apagar marcas de classe.
Voto
Na esteira da expansão dos domínios da escolha veio a produção de tecnologias — com dispositivos e modos de uso — que possibilitassem seu exercício sem coerção e, ao mesmo tempo, sem riscos para a ordem social. A autora mostra, ao final do livro, como esses elementos compõem a história do voto e da criação de novas ciências da escolha do final do século 19 aos nossos dias.
Para abrir o voto secreto à análise, Rosenfeld recua às revoluções modernas. A autora chama atenção para o fato de que a afirmação da soberania popular não resultou necessária nem imediatamente na adoção da eleição direta e secreta como modo de escolher os representantes. Na prática, a modelagem dos modos de escolha dos representantes foi a saída encontrada para o risco que a soberania popular oferecia à manutenção da ordem.
Na análise desse processo, Rosenfeld retoma o debate do século 19 acerca da forma de votação mais apta a assegurar a livre expressão da escolha: o voto aberto ou o secreto. O filósofo inglês John Stuart Mill, por exemplo, advogou pelo voto aberto, apostando na publicidade como proteção contra a coerção. A votação secreta se tornou, no entanto, tão bem-sucedida e pacífica ao longo do século 19 que o modo de eleição se constituiu como modelar.
Ao contrário das compras, o voto foi codificado como masculino: só homens, ainda que nem todos os homens, podiam votar, de modo que só eles apareciam votando. Nos Estados Unidos, homens e mulheres negros estavam desabilitados ao voto, como as mulheres brancas, que, segundo Rosenfeld, antes da adoção da eleição por voto secreto, tinham ocasionalmente algum grau de participação no processo político.
“A escolha”, escreve Rosenfeld, “raramente é sinônimo de igualdade”. Com marcas de cor e classe, o ativismo de mulheres compreenderá, nos séculos 19 e 20, a encenação pública do voto, numa demonstração prática da capacidade das mulheres de escolher na política, como no consumo, sem perturbar a ordem.
O século 20 testemunhou, enfim, a ampliação tanto daqueles socialmente percebidos como aptos a escolher e a serem escolhidos quanto as possibilidades de escolha, ainda que essas permaneçam desiguais. Também testemunhou a instituição de saberes e especialistas dedicados a compreender como as pessoas escolhem e como suas escolhas influenciam o meio social. São as ciências sociais, a economia, a estatística e a psicologia, agora desafiadas a atuar num mundo em que os próprios fatos se tornaram objeto de preferência.
The Age of Choice ajuda-nos a entender como chegamos até aqui. Escrito em boa prosa, analisa um processo longo e intrincado no qual a liberdade se associou tão fortemente à escolha que pareceu resumida a ela. Escova o passado a contrapelo, sem fetichizar o presente. Por isso, ajuda-nos, além de tudo, a pensar como seguir.
Editoria especial em parceria com o Laut
O LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.
Matéria publicada na edição impressa #91 mar em março de 2025. Com o título “Ser livre é poder escolher?”
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