Natalia Viana (Pablo Saborido/Divulgação)

Jornalismo,

Na cozinha com Julian Assange

Jornalista que esteve no núcleo da operação WikiLeaks faz depoimento corajoso do megavazamento de informações diplomáticas confidenciais

10out2024 • Atualizado em: 16out2024

No final de 2010, o WikiLeaks reluzia, fulgurante. Era um nome consagrado e uma marca inconfundível. No início daquele ano, a revelação de correspondências secretas dos militares dos Estados Unidos durante a guerra do Iraque, com registros de crueldades criminosas, deixou estragos na imagem diplomática de Washington. Você certamente se lembra. O jornalismo mudava de patamar. O mundo ficava diferente. Tudo muito rápido. O fundador e líder do WikiLeaks, o australiano Julian Assange, de 39 anos, era um rockstar, sem nenhuma força de expressão: em dezembro, a revista Rolling Stone o elegeu como o “rockstar do ano”. A publicação estampou sua imagem na capa e o aclamou como “a pessoa que melhor personifica o comportamento rock ‘n’ roll em 2010”.

Naquela época, todo mundo na imprensa queria falar com essa figura polêmica que trocou a guitarra elétrica pelo computador para desafiar todos os segredos de Estado e tirar o sossego das maiores potências do planeta. Todas as redações queriam entrevistá-lo, fotografá-lo, falar com ele. E quase ninguém conseguia. O sujeito vivia fechado em seu círculo de camaradas. Em parte, seu comportamento recluso poderia ser explicado por sua personalidade um tanto excêntrica, que mais tarde viria a ser diagnosticada como, ao menos em certo grau, autista. Em outra parte, a motivação de se esconder primava pela mais rigorosa racionalidade. Ele precisava mesmo se preservar, e isso por motivos de segurança: logo que despontou para o estrelato midiático, tornou-se alvo de investigações e processos judiciais inclementes. Sua prisão era iminente.

Essa condição o levaria mais tarde a se exilar na embaixada do Equador em Londres. Mais tarde ainda, policiais o levaram a uma prisão de segurança máxima na mesma cidade. O líder do WikiLeaks passou cerca de treze anos fechado sem poder ir à rua. Só foi posto em liberdade em junho de 2024, graças a um acordo selado numa corte dos Estados Unidos. Na negociação, Assange aceitou se declarar “culpado” de ter violado a lei de espionagem. Em troca, as autoridades levaram em conta que ele já tinha passado tempo demais na cadeia e lhe devolveram o direito de ir e vir.

Voltando a 2010, quando o rockstar ainda não se confinara nem no exílio nem numa cela, o fato é que o australiano, já às voltas com processos criminais que o encurralavam, era também virtual e praticamente inacessível. Ninguém furava o bloqueio. Ninguém, menos a jornalista brasileira Natalia Viana. De repente, ela se viu morando na mesma casa que ele. De repente, passou a ter conversas pessoais com ele — umas duras, outras afetuosas. De repente, dividia com ele a sala de jantar, a lareira, a cozinha. De repente, quem quisesse ter acesso à estrela maior do mundo hacker precisava passar por Natalia.

Furar o bloqueio

A aproximação se consumara no final daquele ano conturbado de 2010, quando Natalia recebeu um telefonema e, do outro lado da linha, alguém que não queria falar muito porque a ligação certamente estava sendo grampeada a convidou: ela deveria ir a Londres o mais rápido possível para se juntar a um projeto jornalístico ao lado de outros repórteres. Ela conhecia aquele pessoal desde que cursara o mestrado de radiojornalismo no Goldsmiths College da Universidade de Londres. Sabia que o convite era sério, assim como sabia que, se dissesse “sim”, iria trabalhar lado a lado com Assange. Ela disse: “sim”.

Depois de desembarcar na capital do Reino Unido, a jovem repórter foi posta num automóvel e levada para Norfolk, no leste da Inglaterra. O que começou a partir daí foi um turbilhão que deixaria marcas duradouras nas relações internacionais. Foi uma montanha-russa global — e foi também uma aventura política, jornalística e até amorosa. Ela relata tudo em O vazamento: as memórias do ano em que o WikiLeaks chacoalhou o mundo.

A narrativa traz detalhes luminosos e traz mais: não se furta a recompor o contexto com precisão impecável. O livro flui como um thriller, carregado de emoções e suspense. Sem prejuízo do andamento envolvente, constitui um depoimento imprescindível para quem quiser entender a nova era da imprensa, com seus impasses éticos e seus meandros perigosos.

A autora começa descrevendo a paisagem em seu percurso de carro, indo de Londres para Norfolk.

As casas de fazenda se sucediam, brancas, algumas de tijolo aparente, alaranjadas, com suas janelas e portas emolduradas de madeira, e um infalível jardim bem aprumado na frente. Por todo lado havia enormes pinheiros que davam mais perfume ao ar úmido da região.

O cenário seria a sua nova morada. Ela fixou residência num casarão aristocrático, que até nome tinha: Ellingham Hall. Construído no século 18, com três andares e dez quartos, num terreno de 1,5 quilômetro quadrado habitado por plantas, faisões, patos e pombos brancos, Ellingham Hall foi a sede da mais eletrizante operação do WikiLeaks: um megavazamento de 250 mil correspondências diplomáticas que logo apareceriam nas páginas do New York Times, do El País, do Guardian, da Der Spiegel e do Le Monde. O caso, rumoroso e traumático, foi batizado de Cablegate.

Natalia virou parte da “cozinha informativa” de Assange e ficou responsável pela análise de 3 mil desses documentos, os que mais tinham relação com o Brasil e a América Latina. Foi um mergulho. Quando levantou a cabeça, sentiu que estava mudada. “O ano em que eu colaborei com o WikiLeaks me forjou como jornalista. Foi o meu batismo de sangue.” Os telegramas traziam histórias inacreditáveis, às vezes risíveis, mas constrangedoramente reais, irrefutáveis. Uma delas tem um sabor um tanto bananeiro: o presidente Álvaro Uribe, da Colômbia, contava para o embaixador dos Estados Unidos que seu exército entrava clandestinamente em território venezuelano para caçar integrantes das Farc, embora negasse tudo em público.

Quem quisesse ter acesso à estrela maior do mundo hacker precisava passar por Natalia

O grupo instalado em Ellingham Hall era pequeno, sob a chefia direta e diuturna de Assange. A autora não esconde o encantamento: “ver sua mente trabalhar era fascinante”. As jornadas extenuantes se alongavam madrugada adentro. Celulares sempre desligados, obrigatoriamente. Nos notebooks, uma criptografia poderosa. Nada de conexão com a internet. À noite, a turma voluntária — que não recebia salário — relaxava em torno de uma garrafa de vinho e fumava seus rollies (cigarros de enrolar), que saíam mais em conta do que esses vendidos em maço. Muito mais do que cumplicidade, mais do que companheirismo, o time seleto criou laços de amizade e, ocasionalmente, de amor.

Em sua evolução vertiginosa, Natalia se saiu muito bem e foi crescendo na organização que tinha algo de nerd e algo de revolucionária. Em poucos dias, recebeu a incumbência de estabelecer acordos para que jornais brasileiros entrassem na cobertura. Voltou para o Brasil e, graças às tratativas que conduziu, a Folha de S.Paulo e O Globo passaram a ter direito de publicar os furos em primeira mão. Outros veículos vieram em seguida.

A trama de O vazamento ganha fôlego e densidade à medida que fornece dados para a discussão da ética que autorizaria — ou não — a publicação de documentos secretos. A conduta é válida? Nesse campo, não há respostas fáceis. Num manifesto conjunto firmado pelos cinco pioneiros do Cablegate — New York Times, El País, Guardian, Der Spiegel e Le Monde —, surge uma defesa enfática:

Obter e divulgar informações sensíveis quando necessário ao interesse público é parte essencial do trabalho diário dos jornalistas. Se esse trabalho for criminalizado, o nosso discurso público e as nossas democracias se tornarão significativamente mais fracos.

Por outro lado, o próprio Assange teve, em várias passagens narradas no livro, uma postura mais próxima de um hacker inconsequente e mais distante dos cânones que balizam a ética da imprensa. Em pelo menos uma ocasião, deixou escapar informações que poderiam expor a identidade das fontes. Outras vezes, tinha deslizes personalistas. A própria Natalia aponta, em seu relato, que “a paranoia de Julian estava levando a organização para um lugar esquisito”.

Impasses

Estamos ainda longe da conclusão desses impasses. Só o que podemos saber é que são desafios novos, diferentes daqueles que costumavam aparecer. O que temos chamado de “jornalismo colaborativo” modificou a linha de montagem do noticiário, das investigações factuais e da mediação do debate público. Estamos entrando numa nova era da imprensa, na qual as relações cooperativas e solidárias pesam mais que os vínculos empregatícios. Parece pouco, mas isso muda tudo. As equipes encarregadas de interpretar e hierarquizar esses vazamentos de proporções épicas não se vinculam mais a um veículo único. Os profissionais mobilizados provêm de dezenas de organizações diferentes e têm raízes em países diversos. Não obstante, pautam-se por valores, princípios e métodos comuns, com resultados indiscutivelmente exitosos. Tudo muito novo.

A escola do WikiLeaks trouxe benefícios para as democracias? Por certo que sim: trouxe benefícios inestimáveis. Mas trouxe também dilemas desconhecidos e encruzilhadas problemáticas. Para onde vamos agora?

Por enquanto, tudo o que podemos fazer é tatear conclusões provisórias. O “espírito hacker”, se nos ajuda a quebrar as imposturas das burocracias estatais — que são desumanas, por definição —, está longe de poder inspirar uma diretriz procedimental para o fazer jornalístico. Nesse ponto, há muita coisa em aberto.

Uma das identidades mais fortes dessa bela obra é o compromisso feminista. Merece muitas leitoras

Algumas coisas, no entanto, a gente já sabe. Já sabemos, por exemplo, que as funções do hacker e as do repórter, por mais que possam se dar as mãos em investigações de interesse público, não se confundem em nenhum dos seus aspectos. A ética de um não se mistura — nem deve se misturar — com a ética do outro. São distintas, separadas, e, por vezes, antagônicas.

O livro de Natalia nos ajuda a pensar sobre tudo isso. Consolidada nesse depoimento em primeira pessoa, a experiência da autora no núcleo nervoso da utopia corrosiva animada por Assange vem nos apresentar fatos de valor imenso, além de interpretações sensíveis e angulações inteligentes. O livro é uma preciosidade, seja pela franqueza, seja pela honestidade intelectual, seja pela coragem e pela aposta visceral que faz na saúde da opinião pública. Merece leitores numerosos.

Mais ainda, merece leitoras numerosas. Leitoras mulheres. Uma das identidades mais fortes dessa bela obra é o compromisso feminista. Mas, para entender os fundamentos e os desdobramentos desse compromisso, você terá de ler cada capítulo de O vazamento. Todos eles, sem exceção nenhuma, são muito melhores do que esta resenha assinada por um homem.

Quem escreveu esse texto

Eugênio Bucci

Jornalista e professor, é autor de Incerteza, um ensaio (Autêntica).

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