O escritor Cadão Volpato (Silvia Constanti/Divulgação)

Literatura brasileira,

Liberdade e luta, meu amor

Romance restaura tempo mítico em que uma juventude bela e destemida habitou outra dimensão e amadureceu sem encaretar

01ago2024 • Atualizado em: 02ago2024 | Edição #84

Ninguém ali acreditava em horóscopo, mas deve ter sido coisa dos astros. No final dos anos 70, a Escola de Comunicações e Artes, a famosa ECA da Universidade de São Paulo, era um universo à parte, um plano diverso do mundo ao redor. Em seus domínios, as leis do tempo e do espaço eram outras. Você cruzava os gramados que separavam o ponto de ônibus do prédio central e caía dentro de outra dimensão.

Os rapazes usavam sandália de dedo e pareciam flutuar um milímetro acima do chão. As meninas, com madeixas à deriva, deslizavam feito Mariannes encantadas. Uns e outras se distinguiam por saber mais do que os professores nas salas de aula. Discorriam em tom frugal sobre os descaminhos de Marx e conheciam na intimidade a saga dos poetas surrealistas. Não aturavam Gonzaguinha, Ivan Lins e Chico Buarque. Desprezavam o conceito de MPB. Elogiavam a música dodecafônica e dançavam ao som dos Rolling Stones, mas dançavam com um ar de quem era superior aos Rolling Stones. E eram. Diziam que o Partido dos Trabalhadores, fundado em 1978, era um entulho de pelegos. Apreciavam o barulho e o tumulto, e chegaram a imaginar que a tomada do poder no Irã pelos xiitas em 1979 fosse a forma nacional da revolução proletária que varreria o planeta.

Um halo de enigma emoldurava aqueles seres um tanto irreais, como anjos de asas invisíveis. Ninguém como eles soube assimilar tão vividamente a transição entre o ocaso de um regime autoritário e o alvorecer de uma democracia caótica. Ninguém captou como eles o transe do Brasil. Não pertenciam a nada nem a ninguém, e escorriam soltos pelo fio da História — quer dizer, escorriam misteriosamente para o alto. Eram libelus. Deve ter sido coisa dos astros, embora todos e todas fossem materialistas.

‘Abaixo a vida dura’ é uma construção ficcional, mas a história comparece incólume à narrativa

Para contar essa história inapreensível, só mesmo um sobrevivente. Cadão Volpato, que viveu por dentro aquilo tudo, é o narrador que a seleção natural nos legou. Entrou na ECA em 1975. Demorou para sair. Há cinquenta anos, era um moço de vinte ou quase vinte, charme gauche, nariz grande, riso solar e voz grave, ainda que suave. Magro. Frequentou as rodas dos militantes que jogavam futebol na frente da escola. Um deles entrava no campinho com os óculos de fundo de garrafa amarrados na cabeça. Cadão compunha canções que derretiam ouvidos. “Menina flor-de-lis”, por exemplo. Rabiscava desenhos inconfundíveis. Era gostoso ficar na companhia dele, o mais gracioso dos entes translúcidos.

Depois daquele período de cronologias em suspenso, ele virou revisor, e então jornalista, e aí apresentador de televisão. Foi também roqueiro, vocalista de uma banda cult, o Fellini. Gravou discos, fez shows e lançou livros. As décadas vieram e ele seguiu vivo e jovem. Sensível. Magro. Poeta. Não se corrompeu. Era preciso não se desintegrar moralmente, pois só assim, intacto, daria conta de escrever esta obra fabulosa, Abaixo a vida dura.

Aos fatos 

Estamos falando de um romance, uma construção ficcional, mas a História comparece incólume à narrativa. Sendo assim, comecemos pelos fatos, a parte mais fácil. Libelu era o apelido da Liberdade e Luta, uma tendência do movimento estudantil dos anos 70. Estrepitosa e radical, desconcertava o olhar da imprensa e a empáfia dos adversários. Repórteres queriam entrevistar os líderes da Libelu, e às vezes conseguiam. As correntes rivais queriam desmoralizá-los, mas nunca chegaram nem perto disso.

Era um tempo de diversidade fervilhante na esquerda universitária. Havia o pessoal que vinha do velho Partidão, com uma ortodoxia doutrinária e anódina. Seus adeptos acreditavam que a luta de classes caminhava por etapas esquemáticas: feudalismo, revolução burguesa, democracia e, no final, se o Kremlin deixar, a revolução socialista. Os militantes do PC do B, um racha do Partidão, eram menos acomodados, mas também etapistas à sua maneira. Patrocinavam a tendência estudantil chamada Caminhando, nome tirado do primeiro verso da música de protesto de Geraldo Vandré. Outra tendência com nome em gerúndio era Refazendo, agora com crédito para Gilberto Gil. A Refazendo tinha vínculos com a Ação Popular, mais conhecida como AP, um grupo revolucionário de raízes católicas.

O campus do Butantã era um ecossistema de siglas. Todas as organizações clandestinas, do ML-8 à ALN, arregimentavam seguidores e se manifestavam por meio de tendências estudantis. Eram múltiplas e eram chatas. Não que lhes faltasse combatividade — o que lhes faltava era imaginação. Até o figurino era previsível. Muitos militantes se vestiam como guerrilheiros urbanos da década de 60. Pareciam saídos de uma loja de antigamente. Da Ducal, talvez. Só a Libelu era diferente. Colorida, inteligente, irreverente. Ao menos na ECA de 1977 e 1978, quando o movimento estudantil voltava para as passeatas no centro da cidade, não tinha para mais ninguém. As outras defendiam a palavra de ordem “Pelas liberdades democráticas”. Os libelus gritavam “Abaixo a ditadura”.

Num ponto, e só nesse, a Liberdade e Luta se parecia com as demais: seguia as diretrizes estabelecidas por um grupo clandestino. Esse grupo era a OSI (Organização Socialista Internacionalista), filiada à tradição da Quarta Internacional, de Liev Trótski. Um dos pilares teóricos da OSI era a tese da Revolução Permanente, segundo a qual o processo revolucionário não obedecia a nenhum etapismo, mas
podia pular fases históricas. Outro pilar, a Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado, elaborada por Trótski, ensinava que a transformação do mundo era contraditória, desordenada e necessariamente internacional. Consequentemente, todo trotskista era um internacionalista, e todo trotskista sabia que o movimento de massas é sempre mais forte que os aparelhos. Ele e seus camaradas tinham a convicção de que, se mobilizassem os trabalhadores explorados, mudariam a sociedade inteira. Os aparelhos viriam abaixo — especialmente os do stalinismo, como o velho PCB.

A travessura revolucionária da Libelu ainda pulsa num lugar que o livro mostra, mas não entrega

Além da política, os libelus tinham uma antena afiada para a arte. Na trilha das conversas entre Trótski, já exilado no México, e o líder do surrealismo, André Breton, os agitadores da Quarta Internacional defendiam uma liberdade extrema, desestruturante. Um artista jamais deveria abaixar a cabeça para nenhum programa partidário. Nenhum, nem mesmo os de esquerda. Todo uso de linguagem artística para fazer propaganda ideológica era indigno e inaceitável. Liberdade, meu amigo. Liberdade e luta.

Naqueles anos, quando a ditadura começava a apresentar sintomas de fadiga do material, o pensamento da OSI oferecia pistas para uma revolução estética, ética e política. A juventude se via convocada a lutar de uma só vez contra a ditadura, contra o capitalismo e contra a distópica burocracia soviética, a máfia que mumificara a revolução bolchevique. Ser trotskista era ser contra todo tipo de baboseira.

Abaixo a vida dura nos traz de volta essa aventura, mas, como eu já disse, não se limita a uma retrospec-
tiva factual. É mais do que isso, muito mais. É literatura, não reportagem. É como artista, não como memorialista, que o autor realiza a proeza de revelar o tangível e o intangível, o fato e a fábula. Seu romance pode ser lido como um relato confiável da experiência política que definiu o caráter de uma geração (episódios traumáticos, como a noite em que tropas policiais invadiram a PUC de São Paulo, despejando bombas e prendendo centenas de estudantes, em 1977, estão lá, minuciosamente reconstituídos), mas vai além: restaura o tempo mítico em que uma juventude bela e destemida habitou outra dimensão e se tornou adulta sem se adulterar. Sem encaretar. Sem se vender. A juventude que seguiu à risca os versos de Paulo Leminski, no poema “Para Liberdade e Luta”: “Me enterrem com os trotskistas/ na cova comum dos idealistas/ onde jazem aqueles/ que o poder não corrompeu.”

Os personagens de Volpato são meninos e meninas reais, mas ele teve o engenho de mesclá-los, redesenhá-los e disfarçá-los na esfera ficcional. No livro, é difícil saber exatamente quem é quem — ou quem foi quem. Um único personagem manteve seu nome e seu apelido sem alterações: Luiz Antônio Novaes, que todo mundo chamava de Mineiro. Estudante da ECA, o Mineiro foi um dos expoentes da Libelu e militou na OSI, onde atendia pelo codinome Diogo. Em Abaixo a vida dura, ele aparece como foi, e tem os ares de um Buda da Cidade Universitária, sem nenhum traço de egoísmo ou vaidade. Na chamada vida real, o Mineiro morreu em 2016 aos 56 anos, já consagrado como um dos maiores jornalistas de sua geração. Pensando bem, era mesmo um Buda, com suas pernas cruzadas em posição de lótus, seu espírito elevado e seu coração generoso.

Delicadeza

O escritor não exagerou ao retratar o Mineiro, assim como não exagerou ao retratar ninguém. Delicadeza é sua prova dos nove. Como ilustrador — finíssimo —, desenhou um cartaz para a campanha de Liberdade e Luta na UEE (União Estadual dos Estudantes), em 1979. Tudo se resumia a um gatinho pintado de azul, num estilo que caberia muito bem num livro infantil. Ao lado do singelo felino, uma só frase: “Nem todos os gatos são pardos”. Esse cartaz foi o grande acontecimento daquela campanha, mas o eleitorado não embarcou. A Libelu perdeu nas urnas, mas não perdeu um só fiapo de sua arrogância deliciosa. Os anjos trotskistas não se abalavam jamais. Branca, branca, branca! Leon, Leon, Leon!

Agora romancista, o velho cartazista do movimento estudantil desenha seus tipos como gatos azuis e de outras cores. Delicadeza sem exagero. O núcleo da ação é uma república de estudantes, à sombra de uma figueira imensa, no quintal. Sob a árvore, o existir transcorre em outra dimensão, como nas dependências da ECA. À noite, os moradores se juntam à luz das estrelas, ao abrigo da figueira, às vezes à beira do fogo, enquanto o tempo insiste em não passar. O Mineiro janta pouco. Uma fruta, nada mais. Lê muito. Ele se alimenta de ideias.

Um dia, porém, a conjunção astral mudou e os dias, os meses e as décadas voltaram a fluir como fazem em todas as partes. Os libelus perderam a inocência, ganharam cabelos brancos, uns até morreram, mas, misteriosamente, não se divorciaram da alegria. Sua travessura revolucionária ainda pulsa num lugar intangível que o livro mostra, mas não entrega. Abaixo a vida dura é uma história de amor, liberdade e luta, escrita por um grande artista da palavra.

Quem escreveu esse texto

Eugênio Bucci

Jornalista e professor, é autor de Incerteza, um ensaio (Autêntica).

Matéria publicada na edição impressa #84 em agosto de 2024.

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