

Jornalismo,
Insistir em contar
A jornalista Alexandra Lucas Coelho escancara o silêncio frente ao genocídio dos palestinos pelo Estado de Israel
21maio2025 | Edição #94É dezembro de 2023. No novo cemitério à entrada do Campo de Refugiados de Jenin, na Cisjordânia, a palestina Khitam visita a sepultura do filho, morto em seu quarto pelo tiro de um sniper israelense. Diante da jornalista portuguesa Alexandra Lucas Coelho, ela questiona por que falar se o mundo não ouve. Ainda assim, ela fala.
Khitam é refugiada de Haifa, uma das centenas de milhares expulsas de casa com a fundação do Estado de Israel em 1948 — a Nakba, ou Catástrofe, para os palestinos. Ela fala para apontar a mudez dos outros: “O vosso silêncio está a matar-nos. Está a matar-nos, com os israelenses”. Gaza está em toda parte, que narra o encontro de Khitam com a jornalista, é um livro contra o genocídio dos palestinos pelo Estado de Israel, mas também contra o silêncio mortífero do mundo.

Nele, Alexandra Lucas Coelho reúne, em ordem cronológica, textos publicados em sua maioria no jornal português Público após o 7 de outubro de 2023 — dia do ataque do Hamas a Israel, que desde então o usa como pretexto para o extermínio de um povo. São artigos de opinião, escritos até março de 2025, e reportagens em Cisjordânia, Jerusalém Oriental e Israel, feitas entre dezembro de 2023 e janeiro de 2024. Em Gaza, como todos os outros jornalistas estrangeiros, ela não pode mais entrar.
O que resta
A reunião de textos do último ano e meio evidencia que a insistência em relatar o horror é a única possibilidade para a autora — ainda que, como Khitam, ela reconheça que “o mundo está cansado de saber”. Relatar o horror é manter um fio de esperança e fazer jus à resistência de palestinos como a família Tamimi, que um dos textos acompanha.
Bilal Tamimi documenta e exibe no YouTube a ocupação do vilarejo de Nabi Saleh, na Cisjordânia, desde 2009, quando colonos israelenses se apropriaram de uma fonte de água dos palestinos. Ele continua filmando invasões mesmo depois de ter seu braço alvejado, mesmo depois de sua mulher, Manal, ser baleada. Do terraço de casa ainda vê os colonos, na ocupação ilegal, a cada manhã.
Manal distribui frutos secos e refrigerantes. Estamos diante da TV, ligada aos vídeos de Bilal, como quem vai ver um filme, só que protagonizado pela família, mesmo. Cinema de ação, blindados, colunas de fumaça, cabeças a sangrar, balas nas pernas: estas cabeças, estas pernas. Vemos na tela a casa onde estamos: estas mesinhas, aquela porta. O vídeo de Manal alvejada com balas de borracha à queima-roupa. Depois numa perna, bala real.
Relatar o horror é a única possibilidade para a autora — ainda que ‘o mundo esteja cansado de saber’
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A escrita de Alexandra Lucas Coelho é atenta à especificidade daquelas cabeças e pernas, mesinhas e portas, mesmo nos artigos que escreve de Portugal. Ela fala sobre a “prisão colonial” em que vivem os palestinos há mais de duas décadas, mas desde outubro de 2023 a tragédia de Gaza se tornou o centro de sua escrita, na imprensa e nas redes sociais.
A jornalista conheceu o enclave em 2002, durante a Segunda Intifada, tendo retornado muitas vezes, algumas quando era correspondente em Israel/Palestina. Por isso é feliz a opção de abrir o livro com sua última reportagem em Gaza, publicada na revista Visão História em 2017.
Naquele ano, entrar na Faixa já era desafiador, pois além do controle de Israel havia o do Hamas: controle de visto, de entrada, de comportamento. O texto expõe a opressão do Hamas desde que foi eleito em 2006, mas contextualiza seu surgimento e radicalização num lugar de onde um palestino sair já era “das coisas mais difíceis do planeta”.
O texto de seis anos antes do 7 de outubro de 2023 se chama “Gaza: à beira de explodir” e ressalta a precariedade da vida numa faixa de 40 km de comprimento por 6 a 10 km de largura, onde não há trabalho nem sala de cinema, onde a eletricidade dura de três a quatro horas por dia, onde as pessoas fazem piquenique sobre entulhos de guerras anteriores e vão à praia porque “é o que resta”. Mas são mortas se avançarem mais de seis milhas mar adentro.
Algumas delas estão retratadas nas 27 fotos coloridas que se seguem à reportagem de 2017. Elas se somam a 11 imagens da Cisjordânia, estas em preto e branco na edição brasileira. Todas tiradas pela jornalista.
Nunca mais?
Escrever dia após dia sobre os palestinos é honrar sua humanidade e, para Alexandra Lucas Coelho, é também honrar a memória do Holocausto contra os judeus: “Nunca mais é para toda gente”, repete, de várias formas, ao longo do livro. Ela foi uma das primeiras a ter a coragem de dizer que o Holocausto era justamente o que deveria impedir o massacre em Gaza.
Os primeiros artigos, de outubro de 2023, já falavam de um genocídio em curso, denunciado progressivamente por teóricos e juristas. Outros trazem vozes de judeus — historiadores, ativistas, estudantes em protesto — para reforçar que condenar o Estado de Israel não é ser antissemita.
Ler retrospectivamente esses textos dá a dimensão da urgência e também do silêncio desde o fim de 2023. Ainda com alguma esperança de que algo seria feito frente ao genocídio, aqueles primeiros artigos já escancaram a inoperância da comunidade internacional. Eles denunciam ações deliberadas pró-Israel, como as do então presidente dos Estados Unidos, Joe Biden. Criticam a paralisia de líderes europeus, como os alemães, diante da culpa pelo Holocausto e da ambivalência do humanitarismo, ao mesmo tempo necessário e reprodutor do estado de coisas. E louvam a postura do secretário-geral da onu, António Guterres, uma das primeiras figuras públicas a dizer que Israel viola a lei humanitária e a se posicionar incisivamente contra a “ocupação sufocante desde 1967”.
Esses temas ressurgem nos artigos da terceira parte do livro, escritos depois que a autora voltou da Cisjordânia. Neles, ela relata a mudez na convenção do partido democrata nos eua e as insanidades proferidas por Donald Trump, antes e depois de ganhar as eleições; os crimes do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, e de seus ministros; a repressão de protestos em universidades estadunidenses, com prisão e deportação, e nas ruas de Berlim.
O primeiro desse conjunto de textos, de janeiro de 2024, se intitula “Nada vimos em Gaza”, uma ironia com o fato de a todo o tempo se ouvir de organizações internacionais que nunca vimos nada igual ao que acontece lá. E diz: “Então, se Gaza é o nunca visto, o que seria se víssemos mais”. Para fazer ver, Alexandra Lucas Coelho confia nas novas gerações que não carregam a culpa do Holocausto, nos ativistas jovens de Gaza que usam as redes sociais e nos que, em Israel, recusam o serviço militar. E continua confiando no jornalismo.
O penúltimo texto do livro tem como título “Não acaba aqui”. Escrito em março de 2025, trata do assassinato de dois jornalistas de Gaza por Israel e a mensagem deixada por um deles, o repórter Hossam Shabat: “Não deixem o mundo olhar para o lado. Continuem a lutar, continuem a contar as nossas histórias”. A autora continua, como no momento em que finalizo este texto e ela expõe, nas redes sociais, o assassinato de mais um jornalista em Gaza.
Para fazer ver, Alexandra Lucas Coelho confia nas novas gerações e no jornalismo
Gaza está em toda parte insiste em contar. O livro relata o zumbido dos drones, as invasões militares, os desalojados, feridos e mortos — oficialmente mais de 50 mil; estudos de 2024 já apontam mais de 70 mil. E, como diz a autora, “há muitas formas de matar”. Ela expõe a desumanização cotidiana, as bandeiras de Israel nos territórios ocupados, mesquitas e fachadas grafitadas com insultos em hebraico e com a estrela de davi.
Só que a vida resiste em meio ao horror. E a jornalista se preocupa em mostrar isso mesmo à distância, a partir de relatos dos sobreviventes com que troca mensagens. Seguimos alguns deles ao longo dos artigos, como W., um tradutor com problemas de mobilidade, que já fora torturado pelo Hamas e em 2024 tentava sobreviver dormindo do lado de fora de um hospital, até conseguir tratamento médico no Egito.
Um dos textos mais bonitos é o que relata a alegria dos palestinos no cessar–fogo em Gaza, em janeiro de 2025, reforçando o que a jornalista deu a ver em reportagens e ao longo do livro:
Sempre senti que o milagre na Palestina, mas sobretudo em Gaza, era a vida apesar de tudo. A hospitalidade, a entreajuda. Toda gente não ter enlouquecido. Apesar de os pais já terem sido presos, ocupados e mortos, os avós idem, e tudo a cada dia ser pior. E apesar de o mundo — mesmo sem entrar em Gaza, mesmo com o muro — ver, saber e permitir.
O cessar-fogo durou pouco e não impediu que Israel continuasse a atacar Jerusalém Oriental e o campo de Jenin, na Cisjordânia. Ainda assim, mesmo sabendo que suas casas foram destruídas e não haveria portas para abrir, muitos sobreviventes de Gaza voltaram para o Norte naquele momento, cabeças e pernas juntas, numa imagem de unidade:
Eram eles mesmos, com os seus corpos, a Faixa de Gaza.
Matéria publicada na edição impressa #94 em maio de 2025.
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