Canções do exílio, Literatura,
A vida dos outros
Romance de Jenny Erpenbeck põe em choque o mundo ordenado de um professor alemão e as experiências de refugiados africanos
01out2024 • Atualizado em: 30set2024 | Edição #86 outProfessor universitário recém-aposentado, Richard inventa um “projeto” para ocupar os dias vagos: entrevistar refugiados africanos num alojamento em Berlim. Imagina que duas semanas de leitura e uma lista de perguntas sejam suficientes. Em sua primeira visita, exausto em menos de uma hora de entrevistas, reúne um amontoado de dados que, juntos, não fazem muito sentido. “Quando todo um mundo que não conhecemos desaba sobre nós, como começar a ordená-lo?”, o alemão se pergunta sobre aquele encontro. Mas poderia estar falando da vida dos refugiados na Europa.
Richard é o protagonista do romance Eu vou, tu vais, ele vai, da alemã Jenny Erpenbeck. Viúvo, sem filhos, mora sozinho numa casa à beira do lago na antiga Berlim Oriental e ainda não consegue se localizar bem em áreas da cidade que, há não muito tempo, faziam parte de outro e inacessível país, a Alemanha Ocidental. Quando ele se aproxima dos refugiados, seu mundo ordenado, onde toda manhã há chá Earl Grey, um pão com mel e outro com queijo — “ovo, só aos domingos” — se choca com experiências que ele é incapaz de conhecer por seus métodos acadêmicos.
No início do romance, dez refugiados africanos fazem greve de fome na Alexanderplatz. Eles se recusam a dizer o nome, mas levam um cartaz no qual se lê: “Nós nos tornamos visíveis”. Richard passa por ali, mas não os vê. Só fica sabendo da manifestação pela televisão e se dá conta da própria ignorância: há quase um ano, refugiados acampam em outra praça da cidade, a Oranienplatz. Só quando eles são retirados dali e levados a um alojamento no subúrbio — quando se tornam invisíveis — o professor consegue se aproximar. Num lugar controlado, com rígidas regras de circulação, ele é o pesquisador e os refugiados são seu objeto de pesquisa, guardados em quartos coletivos cujas portas são abertas sem que se espere autorização.
O entrelaçamento de vidas é o cerne do livro com altas doses de reflexão filosófica e citações
Ali, onde os africanos não fazem muito mais do que dormir, jogar bilhar e ver programas banais na televisão, enquanto esperam que o governo decida se poderão pedir refúgio na Alemanha, se instaura uma colisão de tempos e espaços.
A porta se abre, um homem preto olha para dentro do quarto e diz alguma coisa numa língua que o visitante não compreende, hauçá talvez; recebe uma resposta e logo vai embora. Frequentou alguma escola? Raschid não sabe nadar. Segura-se firme num cabo e, assim, permanece à tona. Zair tampouco sabe nadar; enquanto o barco vira, ele escala sua lateral, suspensa no ar, até a base, de onde é resgatado e salvo. Qual era seu esconderijo preferido na infância? Mas, das oitocentas pessoas no barco, 550 morrem afogadas. Na televisão, veem-se agora muitos peixes numa esteira rolante; mãos femininas calçando luvas de borracha os apanham um a um e, com grandes facas, os transformam em filés.
Face a face com homens cujos nomes não consegue memorizar, o alemão os identifica com deuses gregos como Hermes ou Apolo ou personagens lendários como Tristão. É difícil para ele se lembrar de alguém, “cabelos e rostos são todos tão pretos”. Mas, aos poucos, eles se diferenciam. Por marcas de guerra, como o olho esquerdo que “não parece totalmente em ordem” de Osarobo ou o “traço de dor que circunda a boca” de Rufu; mas também por marcas de vida, como quando se arrumam para ir à aula de alemão e “o cheiro é de manteiga de cacau e banho de chuveiro”: o paletó de Zair, os óculos de sol espelhados de Ithemba, as correntes de Osarobo.
Mais Lidas
Num contexto político em que a consciência da diferença por vezes paralisa a invenção ficcional ou moraliza personagens, Erpenbeck se arrisca a imaginar vidas muito diversas. Ao fim do romance, a autora agradece a treze pessoas pelas “muitas e boas conversas”, e imaginamos que elas sejam algumas das centenas de africanos que de fato acamparam na Oranienplatz, em Berlim, entre o fim de 2012 e o início de 2014, pedindo para ficar no país e circular livremente pela Europa. O livro foi publicado na Alemanha em 2015, quando eram os refugiados sírios que se tornavam visíveis na mídia, e recebeu o prêmio Thomas Mann. Este ano, Erpenbeck ganhou o International Booker Prize com o romance Kairos, inédito no Brasil, ao lado do tradutor Michael Hofmann.
Artista peruana narra sem palavras, mas com honestidade e poesia, o drama dos refugiados
Relação assimétrica
O entrelaçamento de vidas é o cerne de Eu vou, tu vais, ele vai, um romance com altas doses de reflexão filosófica e citações — Homero, Goethe e Dante, entre outros, compõem o repertório do professor de filologia clássica. Erpenbeck não se esquiva de narrar os horrores da guerra e a violência dos deslocamentos migratórios do século 21. Mas, apesar de unidos por um destino trágico, Awad, Apolo, Karon, Ithemba, Raschid e Osarobo, nascidos em países como Gana, Nigéria e Níger, têm histórias singulares. E as contam de formas singulares para Richard, seja com hesitação, excesso de informação, lapsos de memória ou contextos aparentemente fora de lugar. Como a mexicana Valeria Luiselli aborda em Los niños perdidos: un ensayo en cuarenta preguntas, inédito no Brasil, são relatos que não cabem num típico questionário de imigração.
Com a fala acelerada, entremeada de risadas, Tristão-Awad conta sobre o pai que, antes de ser assassinado, lhe ensinou a enxugar as costas com a toalha na diagonal, e imagina o banheiro onde fará o mesmo com o filho. Apático, Osarobo, dezoito anos, os três últimos na Europa, não consegue dizer muito além de “Life is crazy, life is crazy”. Ithemba, que cozinha fufu para Richard, cruzou fronteiras sem medo, mas se apavora em qualquer compromisso com as autoridades alemãs. Apolo, resistente a falar sobre seus pais a um estranho, conta sobre sua vida nômade de tuaregue no deserto; poliglota, se esforça para aprender os verbos irregulares em alemão, mesmo sem saber se vai poder usá-los: “Eu vou, tu vais, ele vai”. O inquieto Raschid se lembra dos cadáveres que viu debaixo d’água, mas também de como desenhar os portões que construía na Líbia.
A urgência da vida em suspenso faz os refugiados pessoas de carne e osso, em vez de figuras passivas
Aos poucos, os encontros saem do alojamento e Richard conhece uma cidade que também lhe era estranha. O alemão consegue serviços informais para os africanos, que não podem trabalhar oficialmente. Alguns passam a frequentar sua casa e a lhe fazer perguntas. No curso de quase um ano, o protagonista não tem uma transformação radical. Ele mantém falhas, preconceitos, ignorâncias e privilégios. Mais do que isso, uma assimetria fundamental permanece: Richard é um cidadão alemão branco, os refugiados são africanos pretos que a qualquer momento podem ser deportados.
Mas esse é, sim, um romance sobre a mudança de um homem por meio de encontros que perturbam suas formas habituais de ver o mundo. Richard oferece o piano a Osarobo, que nunca havia tocado um, e este lhe oferece ruídos “capazes de transformar o tempo que passa no interior de casa em algo como um dia a dia”.
O que Osarobo está tocando não é Bach, Mozart, tampouco jazz ou blues, mas Richard é capaz de ouvi-lo ouvindo a si mesmo, e esse seu ouvir a si próprio com atenção faz das notas tortas, enviesadas, pungentes, titubeantes e impuras alguma coisa que, a despeito de toda arbitrariedade, é bela.
‘Trancafiados no tempo’
São os problemas dos africanos de pele preta que levam Richard a estudar as leis europeias e alemãs de pele branca. Esse ponto de partida faz toda a diferença. Com ironia, a autora constrói um emaranhado de absurdos jurídicos sobretudo nos diálogos do professor com advogados. Neles, desmorona qualquer lógica que tente reconciliar a abstração da lei e as experiências daqueles que, mais cedo ou mais tarde, serão enviados para a Itália, porque o país de entrada na Europa é onde eles devem solicitar refúgio (a tradução solicitação de “asilo” é imprecisa, porque, no Direito brasileiro, limita-se à perseguição política). E, da Itália, provavelmente serão deportados para seus países de nascimento.
Diferentes épocas da história da Alemanha são evocadas nas lembranças de Richard e materializadas em objetos como o globo terrestre com a África Oriental Alemã, guardado pelo professor, e a fachada que até hoje anuncia artigos coloniais e tem marcas de tiros da Segunda Guerra Mundial. Mas é na espera imposta aos africanos que a diferença colonial entre os europeus e os outros se faz mais presente no romance de Erpenbeck. Os refugiados são “trancafiados no tempo”, entre um futuro que não chega e um passado que os atormenta. “Os espíritos, Karon diz, só nos acompanharam até a costa da Itália. Não pisaram na Europa.”
O romance tensiona com maestria a vida adiada pela lei e uma vida que escapa, não pode esperar. É uma urgência que faz dos refugiados pessoas de carne e osso, em vez de figuras passivas; nem santos nem demônios, eles também têm falhas, preconceitos e ignorâncias — mas não privilégios. Essa urgência pontua momentos de uma narrativa em geral sóbria, que reflete a vida ordenada de Richard e o rigor da burocracia. As frases que se repetem nos relatos de alguns personagens, por exemplo, indicam um esforço de fazer justiça à dimensão de sua dor, como se as palavras, em algum momento, fossem finalmente conseguir dizer o que deveriam dizer. Apesar de insuficiente, os personagens continuam contando suas histórias, tentando ordenar um mundo desabado, seja de forma repetitiva, hesitante ou quase silenciosa. Raramente respondendo a um questionário.
Matéria publicada na edição impressa #86 out em outubro de 2024. Com o título “A vida dos outros”
Chegou a hora de
fazer a sua assinatura
Já é assinante? Acesse sua conta.
Escolha como você quer ler a Quatro Cinco Um.
Faça uma assinatura anual com até 56% de desconto e ganhe uma ecobag exclusiva!
Entre para a nossa comunidade de leitores e contribua com o jornalismo independente de livros.