Jornalismo,

Ataques a tiros em perspectiva

Livros retratam os atentados de Columbine e Realengo sem recorrer à simplificação das abordagens sensacionalistas e dos bodes expiatórios

01mar2020 | Edição #31 mar.2020

Ataques a tiros em escolas são fatos traumáticos, cujas causas são difíceis de enfrentar e discernir. Rotineiramente retratados de forma simplificadora pela grande mídia, tais episódios complexos de violência historicamente foram utilizados para fomentar pânico moral contra determinadas expressões artísticas e/ou subculturas. Nessas ocasiões, pouca atenção foi dada aos propósitos que efetivamente moviam os atiradores, em termos de como “agiam, pensavam e realmente se sentiam”. Do mesmo modo, dificilmente as vítimas foram representadas nas narrativas jornalísticas. Suas demonstrações de emoção muitas vezes foram apropriadas por abordagens sensacionalistas, movidas por sensibilidades persecutórias comprometidas com a criação de bodes expiatórios. Para quem tem interesse no tema, poucas são as alternativas que oferecem algo além da simplificação.

Felizmente, os leitores brasileiros encontrarão algo diferente nos livros de Dave Cullen e Daniela Kopsch. Columbine (Darkside) é um relato documentado sobre o mais famoso ataque a tiros que já ocorreu nos Estados Unidos, em 1999, enquanto O pior dia de todos (Tordesilhas) é uma obra de ficção sensível, que tem como pano de fundo o Massacre de Realengo, ocorrido no Rio de Janeiro, em 2011.

Tais ataques são rotineiros nos Estados Unidos, país no qual já ocorreram centenas deles, embora o de Columbine permaneça paradigmático. Apesar de terem fracassado, Eric Harris e Dylan Klebold são admirados como heróis em subculturas que prosperam em fóruns da deep web e são considerados como “inspiração” por pessoas que vieram a praticar ataques semelhantes, como o de Virginia Tech, por exemplo. No Brasil, pelo menos sete atentados com armas de fogo em escolas ocorreram nos últimos anos. Dentre eles, o ataque que ficou conhecido como o Massacre de Realengo foi o que ganhou mais notoriedade.

Criminalização cultural

Columbine, de Dave Cullen, é um livro premiado e um best-seller. O autor acompanhou os fatos desde o princípio, embora somente tenha consolidado o seu relato uma década após a tragédia, quando finalmente o público veio a conhecer o que ela representou. No dia 20 de abril de 1999, dois jovens estudantes executaram um plano audacioso: pretendiam explodir Columbine, a escola na qual estudavam, na cidade de Littleton, Colorado, e provocar a morte de centenas de seus colegas e professores. Mas Eric Harris e Dylan Klebold fracassaram. Não conseguiram detonar os artefatos explosivos que plantaram na escola e tiveram que recorrer a armas de fogo obtidas ilegalmente, sem ao menos serem capazes de morrer em confronto direto com a polícia, como desejavam. Como geralmente ocorre em atentados assim, Eric e Dylan se suicidaram. O ataque durou 49 minutos, mas foi suficiente para provocar a morte de treze pessoas e ferir muitas outras.

Eles documentaram seus planos em diários, fitas de vídeo e blogs. O acesso a esse material permaneceu restrito durante muito tempo e parte dele somente será tornado público no final da próxima década. Os dados da investigação também não foram inicialmente divulgados, ainda que por razões distintas. Muitas oportunidades de evitar o massacre foram desperdiçadas e, posteriormente, acobertadas para preservar as autoridades. Eric havia ameaçado de morte os pais de um amigo com quem se desentendera e se gabava de construir bombas em seu site.

O retrato contemporâneo mais interessante sobre a tragédia foi o documentário de Michael Moore, Tiros em Columbine (2002). Na época, a imprensa enfatizou a influência criminógena que games, Marilyn Manson e a banda de metal Rammstein teriam supostamente exercido sobre os rapazes. Especulações sobre uma subcultura terrorista gótica e/ou gamer tomaram conta da grande mídia, que pouco retratou os autores e privilegiou a criminalização de expressões artísticas. São episódios de criminalização cultural, como discuti no livro Videogame e violência: cruzadas morais contra os jogos eletrônicos no Brasil e no mundo (Civilização Brasileira, 2018).

Em Columbine, o autor reconstrói o passado e a personalidade de Eric e Dylan. Produtos culturais como o game Doom, o filme Assassinos por natureza (1994) e o álbum The Downward Spiral, do Nine Inch Nails, são mencionados de forma passageira, sem que lhes seja atribuído qualquer peso determinante ou influência significativa. Cullen enfatiza que as controvérsias sobre filmes, músicas e games rapidamente se espalharam na imprensa com base em relações grosseiras de causa e efeito, mas que a hipótese era simplista para Eric e absurda para seu parceiro, Dylan. Enquanto o primeiro era um pensador crítico com apetite voraz pelos clássicos, o segundo se identificava com depressivos à beira do suicídio e personagens fictícios imersos na mesma desesperança sentida por ele.

Artistas como Marilyn Manson chegaram a cancelar turnês inteiras. Mas a Associação Nacional de Rifles (nra), lobista comprometida com os direitos dos proprietários de armas de fogo, não cancelou a convenção agendada para Denver, no Colorado, a pouco mais de 20 quilômetros do local do atentado. No entanto, para a comunidade local, os bodes expiatórios não soaram convincentes: um cordão humano formado por 3 mil pessoas cercou o local no qual o evento foi realizado e muitos manifestantes carregavam cartazes com os dizeres “Que vergonha, nra”.

Os pais dos atiradores também foram responsabilizados, o que forneceu outro alvo conveniente para a opinião pública. Anos depois, Sue Klebold, mãe de Dylan, publicou um livro intitulado O acerto de contas de uma mãe (Verus), no qual refletiu sobre a relação com o filho e a reação pública contra a família. O suicídio dos atiradores impediu a canalização de sentimentos de vingança social que normalmente seriam dirigidos aos autores do massacre. A identificação de um inimigo “por trás das cenas” possibilitou que esses sentimentos encontrassem um receptáculo, de modo que os pais dos rapazes e determinadas expressões culturais poderiam de algum modo suprir essa lacuna, como substitutos dos agressores originais no imaginário social.

Performance terrorista

Quando a história de Eric Harris e Dylan Klebold era contemplada, o pano de fundo era equivocado: as suposições sobre bullying não condiziam com a realidade. Os relatos iniciais sobre a tragédia especulavam sobre um terceiro atirador ou se havia mais atiradores envolvidos. Conforme apontou o relatório final da autoridade policial, ninguém além dos dois participou do massacre, contribuiu para o seu planejamento ou tinha qualquer conhecimento prévio dele. Propostas de medidas adequadas para evitar novas tragédias — como leis mais restritivas sobre porte de armas de fogo — pouco avançaram, mas os acontecimentos foram apropriados por atores sociais movidos por diferentes interesses.

Durante muito tempo, a retórica religiosa incorporou o ataque a tiros em Columbine como uma prova de que Satanás estava ameaçando a humanidade e a equivocada martirização de uma das vítimas, chamada Cassie Bernall, contribuiu muito para essa associação.

Os rastros deixados pelos rapazes em seus textos revelam algo muito diferente do que foi retratado no calor do momento: Eric era movido por ódio e desdém pela espécie humana, enquanto Dylan sofria de depressão aguda. Eles eram dois rapazes inteligentes, que souberam manipular com maestria todos que poderiam ter impedido os seus planos e contornaram muito bem o fato de que foram pegos furtando uma van. Eric planejou durante cerca de um ano o atentado e concebeu uma combinação explosiva: uniu ataques a tiros com uma performance inspirada em atos de terrorismo.

O livro inclui reproduções dos diários de Eric e Dylan e uma série de desenhos e escritos dos dois. Dylan deixou poucos vestígios e limpou o seu disco rígido. Mas Eric fez questão de deixar tudo documentado: orçamentos, diagramas, cronogramas, fitas cassete, vídeos… Ele se preocupava imensamente com o seu lugar na história. A mesma obsessão por registrar os planos e deixar um legado pode ser encontrada nos autores de outros ataques a tiros, como é o caso do Massacre de Realengo e do atentado ocorrido em Suzano (sp) no ano de 2019.

São essas fontes que possibilitam uma jornada perturbadora e sombria, na qual é revelada a crueldade e brutalidade de Eric e a hesitação suicida de Dylan. Eric intitulou seu diário de “O livro de Deus”. Nele, sua personalidade é revelada por completo: tinha complexo de superioridade gigantesco, repulsa por autoridades e excruciante necessidade de controle. Ele não acreditava em Deus, mas gostava de se comparar a ele. “Me sinto como Deus”, dizia ele. “Sou maior do que quase qualquer um na porra do mundo em termos de inteligência universal.” Para ele, a seleção natural havia fracassado: considerava a si mesmo superior a quase todos em discernimento, inteligência e percepção. Sabia que restaurar a “ordem natural” estava além de suas forças, mas considerava que poderia impor alguma ordem por conta própria: de algum modo arranjaria armas de fogo, construiria explosivos e causaria muitas mortes. Mas ele tinha uma visão mui- to diferente daquela dos autores de ataques a tiros que o precederam.

Eric pretendia fazer do ataque um espetáculo e por isso contava com a cobertura da televisão. Vidas pouco representavam para ele. Estava disposto a matar centenas. Mas a plateia em muito o interessava. Queria deixar uma impressão duradoura no mundo, o que demonstra que o terrorismo pode ser pensado como um projeto de identidade, uma forma profundamente falha de autoafirmação.

Criminologistas como Jeff Ferrell, Keith Hayward e Jock Young discutiram as dimensões simbólicas da violência em Criminologia cultural: um convite (Casa do Direito). De acordo com os autores, a violência nunca é apenas física, mas uma espécie de cerimônia de degradação através da qual o agente procura impor determinados significados na vítima, ao mesmo tempo em que se empodera e projeta também significados para potenciais audiências. Uma performance terrorista pode ser uma forma de dar expressão dramática ao próprio senso de si e do que se pretende ser. Não só para si próprios, mas também perante terceiros.

Se Dylan era um depressivo suicida obcecado por amor, Eric era algo muito diferente: frio, racional, charmoso, cruel, astuto, manipulador, pomposo e egocêntrico. Para Cullen, o diagnóstico póstumo de Eric parece deixar poucas dúvidas. Ele era um psicopata: não era normal, nem insano. Matou por duas razões: para demonstrar superioridade e desfrutar dela. Columbine não é uma obra acadêmica nem se propõe a ser. Por essa razão, seria injusto criticar o livro de Dave Cullen por não contemplar um tratamento científico do objeto eleito, como pode ser encontrado em obras de criminologia que discutem o terrorismo. Mas o leitor encontrará algo relativamente próximo disso.

Cullen destaca o desdém com que psicopatas enxergam as suas vítimas. Ele lemnbra que, embora existam divergências, a maioria dos pesquisadores considera que a psicopatia é algo misto: a natureza primeiro, a criação em seguida. Criações violentas em lares instáveis parecem tornar potenciais psicopatas mais brutais, mas o autor acrescenta que dados atuais indicariam que a melhor criação não seria páreo para uma criança nascida para ser “má”. A psicopatia já foi definida como incapacidade de sentir, mas o próprio Cullen considera que essa conclusão não pode ser assumida de forma absoluta. Penetrando de modo profundo na personalidade dos dois rapazes, o autor desvela, para o leitor, um mundo repleto de emoções instáveis em conflito. Eric e Dylan eram, afinal — para o bem e o mal —, humanos.

História de amizade

Em O pior dia de todos, a jornalista Daniela Kopsch faz um trajeto diferente, transitando no campo da ficção. Ela justifica a escolha de modo muito sensível, dizendo que a literatura nos oferece respostas que a realidade não é capaz de dar. O livro parece ser uma forma através da qual a autora lida com o próprio processo de luto. De fato, ela cobriu o ataque que aconteceu no dia 7 de abril de 2011 e entrevistou estudantes da escola. Mas somente uma pequena parcela do livro é dedicada a ele, pelo menos de forma direta. O autor do atentado não é referido senão de forma passageira e jamais diretamente pelo nome. Em suas palavras, essa não é uma história do massacre, mas uma história de amizade. Essa é a história de duas jovens, Malu e Natália, não de um atentado, suas causas e razões.

Por esse motivo, pareceu-me apropriado respeitar a escolha da autora e não fazer tais especulações aqui, embora já tenha discutido o assunto em outros lugares. E não há como negar que a escolha foi muito acertada. A comunidade do Realengo é vivamente retratada em suas nuances e texturas. Por meio de personagens fictícias criadas com base em pessoas que ela mesma entrevistou, Kopsch cria uma narrativa encantadora sobre as dificuldades e os percalços que envolvem a vida de duas meninas que moram no local.

A partir daí, fala sobre as relações  das garotas com colegas e professores na escola, os planos para o futuro, os desafios da puberdade, a descoberta do amor e os problemas e as alegrias compartilhadas com familiares.

O pior dia de todos poderia muito bem se sustentar como um livro por si só, sem que a inevitável introdução do ataque contra a Escola Municipal Tasso da Silveira pairasse sobre o leitor como uma espécie de espectro que inevitavelmente destruirá o mundo cuidadosamente construído. Mas o livro ganha em densidade quando a autora confronta o sensacionalismo midiático e a intenção deliberada de fazer com que familiares e amigos das vítimas chorassem durante entrevistas.

O pior dia de todos é uma lembrança do que se perde em episódios traumáticos de violência e uma demonstração da força interior daqueles que encontram dentro de si forças para persistir diante da adversidade.

As narrativas criadas por Dave Cullen e Daniela Kopsch comprovam que do jornalismo sério podem brotar insights que a velocidade midiática dificilmente comporta. Conjugados, os dois livros oferecem uma potente experiência de leitura sobre ataques a tiros, mas também sobre relatos existenciais de dor, ódio, angústia e sofrimento, que, somados, são alertas inquietantes sobre uma quadra histórica cada vez mais incerta e insegura.

Quem escreveu esse texto

Salah H. Khaled Jr.

É autor de Videogame e violência (Civilização Brasileira).

Matéria publicada na edição impressa #31 mar.2020 em fevereiro de 2020.