Direito,

Guerra civilizatória

Livros usam conceitos do direito e da cultura para discutir se a internet pode ser melhor no futuro

01nov2017 | Edição #7 nov.2017

Direito e cultura são campos de batalha política por excelência. Às vezes, numa mesma guerra: um abastece o outro para que os fatos mudem as instituições e vice-versa, numa interação em que nunca há neutralidade, inclusive semântica. Os efeitos ideológicos opostos de figuras jurídicas, como o “furto famélico” (furtar para comer ou por outra necessidade urgente) ou o antigo “crime de vadiagem” (que punia pobres e excluídos), seguem equivalentes culturais como as definições de “militante” ou “vândalo” para o sujeito que protesta quebrando uma vidraça.

É natural que se faça um paralelo, portanto, entre livros que usam essas duas matrizes complementares como ferramentas de análise. Mais ainda quando tratam de objetos que nascem de fenômenos tecnológicos e sociais parecidos. É o caso dos recém-lançados Memória e esquecimento na internet, de Sérgio Branco, advogado e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS), sediado no Rio, e A vítima tem sempre razão?, de Francisco Bosco, ex-presidente da Funarte.

O primeiro resulta de uma pesquisa de pós-doutoramento, mas não é dirigido apenas a iniciados. Por sua abrangência, poderia ser um manual introdutório, e há cuidado para que o texto seja o mais claro possível em face de um universo às vezes opaco. Branco percorre discussões legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais sobre como lidamos com o passado no mundo digital. Um problema que surge com a popularização da web, nos anos 1990, e chega ao ápice com as redes sociais, no meio dos 2000. 

Depois de capítulos sobre temas como novas modalidades de arquivamento e escrita biográfica, o autor chega ao que nos interessa aqui: o debate sobre a existência ou não do “direito ao esquecimento”, uma das facetas do que o jurista belga François Ost define como “direito ao respeito da vida privada”. Em termos leigos, é a prerrogativa de apagar dados antigos e incômodos trazidos à tona por algoritmos e programas de busca. À diferença do que ocorre com a indenização civil ou a condenação penal por calúnia, o resguardo à vítima não tem relação necessária com a qualidade da informação difundida (se falsa ou não), e sim com a intensidade/proporção de seus efeitos. 

A aplicação do direito ao esquecimento toca em impasses centrais do nosso tempo 

Um dos exemplos citados é o de uma professora assombrada pelo elo que o Google estabelece entre seu nome e sua prisão, desconhecida por atuais amigos, alunos e colegas, por tráfico de cocaína nos anos 1970. Parece algo simples de resolver pelo bom senso — afinal, qual seria o prejuízo em deixar alguém que pagou por um crime recomeçar a vida em paz? —, mas há outras decorrências. A aplicação do direito ao esquecimento, que não existe expressamente na lei brasileira nem é matéria pacífica em tribunais do país, toca em impasses centrais do nosso tempo. O mais óbvio é o confronto com os princípios da liberdade de expressão e da preservação da história. 

Lutas identitárias

Se Sérgio Branco discute uma nova ideia de espaço público, na qual a tecnologia amplia ou cria demandas legítimas às vezes incompatíveis entre si, algo semelhante se dá no livro de Bosco. O autor vê as mídias digitais ao lado de outros dois fatores, as revoltas de 2013 e o esgotamento do lulismo, como motor de uma alteração profunda no caráter antes conciliatório das relações sociais no Brasil. Daí surge a onda de lutas identitárias que ocupou lugar central na agenda da esquerda — envolvendo negros, mulheres, população LGBT e demais grupos historicamente discriminados. 

A diferença é que a análise do livro, focada nas tensões e contradições que essas lutas geram dentro e fora desses grupos, trabalha num campo anterior ao da normatização: justamente o da cultura, onde as soluções possíveis para os conflitos pedem forma mais ampla, nuançada e ambígua que a de uma lei. Enquanto Sérgio Branco pode resumir numa frase — um item do Código Civil, digamos — o que seriam critérios ideais para a aplicação do direito ao esquecimento, Bosco precisa de muitos capítulos para esmiuçar a gramática e as estratégias das minorias que enfrentam o “poder” (no sentido foucaultiano, de dominação não necessariamente direta e visível) buscando “reconhecimento” (no sentido hegeliano, de “sentimento de segurança sobre nossa própria realidade”). 

Boa parte do raciocínio é feita sob a luz de relatos de “linchamento virtual”. Não se vê no livro um alinhamento ideológico automático, ao menos nos termos caricaturais de hoje. Num dos capítulos, sobre a gravação de um clipe de Mallu Magalhães com personagens negros sexualizados, condena-se a insensibilidade objetiva da representação racial promovida pela cantora. Já no que fala do professor de literatura Idelber Avelar, cujos chats foram considerados provas de assédio machista, Bosco toma outro caminho: discorre sobre princípios do Estado de Direito em oposição aos que, ao ver indivíduos como meros representantes de estruturas oprimidas e opressoras, desprezando fatos e escolhas específicas em cada situação conflituosa, jamais culparão o “lado fraco” da história.

Uma forma de combater o simplismo, acredita acertadamente o livro, é dar aos conceitos empregados nas tretas o devido contexto histórico e filosófico. A ideia de “apropriação cultural”, por exemplo, origem dos ataques que uma garota branca recuperada de um câncer sofreu por usar turbante (considerado um símbolo negro) no metrô, não pode ser desprezada apenas com um truísmo do tipo “culturas sempre se misturam”. 

Ao mesmo tempo que se posiciona contra a ação da militância na briga, Bosco transcende a flagrante injustiça individual para reconstituir a discussão sobre simetria aí envolvida. Ela começa em 1990, quando o filósofo Cornel West nota o descompasso entre a grande quantidade de jovens negros presos nos Estados Unidos e a vasta influência do seu estilo — artístico, de vestir, de falar — na cultura do país. 

Entre as estratégias de bridging, que tenta atrair a simpatia de pessoas de fora do grupo discriminado para a sua causa, e de bonding, que aposta mais na coesão interna desse grupo como programa de sobrevivência, o autor se inclina mais à primeira, até por suas maiores chances de sucesso político. Mas não faz um libelo contra a natureza igualmente necessária da segunda. É ela a responsável por noções como as de orgulho negro ou gay. Que, mesmo flertando por vezes com um essencialismo regressivo, têm cumprido função importante em conquistas civis nas últimas décadas.

O livro de Bosco é a favor das lutas identitárias, com reservas em relação a excessos de seus militantes

Mais exato seria dizer que este é um livro a favor das lutas identitárias, com reservas em relação a excessos de seus militantes. Uma crítica a métodos, ou a desvios teóricos que os sustentam, numa nova dinâmica social vista como positiva, não deixa de ser uma abordagem otimista. Como em Sérgio Branco, há um debate — e, logo, a admissão de uma possibilidade — sobre meios que tornem a internet mais civilizada no futuro. Em Memória e esquecimento, o horizonte seriam consensos regulatórios que equilibrem direito à privacidade e interesse público. Em A vítima tem sempre razão?, uma “justiça universal”, em que desigualdades de tratamento punam estruturas desiguais, e não o gênero, a raça e a orientação sexual de um indivíduo por si só.

Esperança possível

Resta saber se as duas hipóteses são viáveis no mundo de 2017. No caso de Branco, e os argumentos são tirados do seu texto mesmo, institutos jurídicos que se disponham a proteger a intimidade virtual sem apelar à censura têm um obstáculo maior e mais imediato do que qualquer choque de princípios: a própria natureza da web. Em democracias, uma decisão judicial nessa área quase sempre chega tarde — ou é inócua — numa rede de alimentação constante e difusa, que atravessa calendários e legislações. A simples notícia de alguém tentando apagar conteúdo digital é suficiente para acender holofotes sobre os dados que se quer esconder, causando o efeito oposto ao desejado. 

Já no caso de Bosco, e seu ensaio reconhece isto, combater o reducionismo dos “linchamentos” identitários é estar contra a lógica das redes sociais. A mínima familiaridade com elas mostra que grupos cada vez mais homogêneos são um convite à radicalização. Existe uma recompensa narcísica em fazer de si mesmo porta-voz de causas nobres, mesmo à custa de cadáveres particulares, e uma teoria da justiça que esvazie esses pequenos poderes inquisitoriais dificilmente será encampada por quem se beneficia deles. Como bastam meia dúzia de acusadores para desestruturar uma vida profissional e pessoal, até a matemática é favorável a que tudo continue como está, ou pior. 

O antídoto mais provável não nasce das mudanças culturais ou jurídicas no uso da tecnologia, mas da operação inversa. Sofrimentos hoje vistos como terríveis talvez se tornem amenos — ou já se tornaram, para os mais jovens — pela prática no Facebook, WhatsApp e correlatos. Assim como pessoas públicas se acostumam a ser achincalhadas por desconhecidos, cidadãos comuns podem deixar de dar importância a exposições íntimas ou campanhas caluniosas/difamatórias. Afinal, elas estarão em todo lugar, o tempo todo, atingindo a todos. 

Não é o cenário de sonhos para quem se acostumou a pensar sob parâmetros do velho humanismo, mas é a esperança possível diante do histórico do espaço público analisado por Branco e Bosco. Anos de autopublicação e democratização do conhecimento, corroendo mecanismos caducos das velhas estruturas de mediação e poder, deram tanto em avanços culturais e institucionais quanto em retrocessos que parecem imbatíveis. A experiência atual na internet é a de entregar dados pessoais a corporações em troca do acesso às plataformas. A linguagem de memes e fake news tem relação direta com a ascensão de Trump e Bolsonaro. Com tal rebaixamento da privacidade e da inteligência no mundo virtual, e logo na vida, eu não apostaria muitas fichas numa virada civilizatória. 

Nota do autor 
1. Em suas palavras, ressalvando o caráter “excepcionalíssimo” do instituto: “Violação à privacidade por meio de publicação de fato verídico, após lapso temporal, capaz de causar dano a seu titular, sem que haja interesse público, preservando-se em todo caso a liberdade de expressão e desde que não se trate de fato histórico, cuja demanda é direcionada, em última instância, ao Poder Judiciário, que deverá, se entender cabível, ordenar a sua remoção ao meio de comunicação onde a informação se encontra (e nunca ao motor de busca)”. A batalha conceitual segue viva, claro, na definição do que seria “dano”, “interesse público” e “fato histórico”.

Quem escreveu esse texto

Michel Laub

É autor de O tribunal da quinta-feira (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #7 nov.2017 em junho de 2018.