Infantojuvenil,
Poesia dançada
Novo livro de Otávio Junior, ganhador do Jabuti, tem inspiração no passinho, que mistura funk, frevo, samba e capoeira
28jun2021 | Edição #47Otávio Júnior escreve, lê, conta histórias, produz peças, mas não dança. “Não tenho habilidades para dançar. Mas tenho talento para escrever; essa é a minha contribuição”, diz, referindo-se ao passinho, gênero que nasceu nos bailes funk do Rio e, desde 2018, é considerado patrimônio cultural imaterial da cidade. Vencedor do prêmio Jabuti de 2020 na categoria infantil com Da minha janela, publicado pela Companhia das Letrinhas, ele está lançando, pelo mesmo selo, De passinho em passinho. “O passinho é uma grande ferramenta de inclusão, extrapola a dança. Está ligado a festivais, estudos, além de se conectar a outros gêneros urbanos, brasileiros, africanos, caribenhos.”
O desejo de escrever o livro surgiu há quatro anos. Criador da primeira biblioteca no Complexo da Penha, Zona Norte do Rio, Otávio cresceu ouvindo funk. “Passei a adolescência e a juventude assistindo aos bondes. O passinho é um upgrade, um trabalho esteticamente muito elaborado, com movimentos lindos”, diz. Também dificílimos e nem sempre compreendidos por quem, segundo Otávio, não “mora na janela observando a rua da periferia”. Ele conta ter tomado todos os cuidados para que seu livro não fosse uma apropriação de um movimento no qual não atua diretamente. “O que me conforta é ser do mesmo lugar que eles [dançarinos de passinho]. Vivo as mesmas dores e dificuldades. Mas aprendi, especialmente com os movimentos de mulheres pretas, que não vou dar voz a ninguém, porque as pessoas já têm suas vozes. Posso ser, no máximo, um megafone para amplificar essa voz, potencializar esses movimentos”, afirma.
Quem dança, quem escreve
Desde o início, o livro foi construído em comum acordo entre quem dança e quem escreve. A ponte foi Thiago de Paula, diretor da companhia Passinho Carioca e amigo de infância de Otávio. Da sua janela, Otávio entrou pela porta da frente na cena do passinho. Assistiu a espetáculos, batalhas (as competições de dança são uma das marcas das várias danças urbanas), seguiu grupos nas redes sociais, conversou com pessoas que estudam o tema, documentaristas e dançarinos. “Eu precisava fazer uma imersão, entender alguns elementos técnicos. Via apresentações e rascunhava trechos, pequenas poesias. Pegava um movimento, uma jogada de pés, trançada de pernas, escrevia algo e mostrava para os dançarinos. Quando percebi, o livro estava pronto.”
No final do livro, há um pequeno dicionário ilustrado dos passos mais caraterísticos: cruzada, jogadinha, sabará, brega funk, passinho do Romano, Malado, entre outros. “Essa dança mistura elementos de frevo, samba, capoeira, conecta vários mundos. O que define o passinho é sua base funk. O que importa é a batida: 140 ppm, 150 ppm”, diz Thiago de Paula. O passinho é da favela, e isso também o define, segundo Thiago. “É um lugar que boa parte da sociedade não conhece. Criança frequenta baile funk, sim, mas não da forma, muitas vezes preconceituosa, que as pessoas imaginam. Funk não é só rebolado — o que não é um problema para a gente, mas não é só isso”, observa ele.
Como está no próprio nome da dança, uma das suas características marcantes são os movimentos rápidos e precisos de pernas e pés, junto com muita jogada de cintura
Como está no próprio nome da dança, uma das suas características marcantes são os movimentos rápidos e precisos de pernas e pés, junto com muita jogada de cintura. Otávio relata que uma experiência fundamental para o livro foi ter visto, em uma rua da Lapa, uma menina de uns onze anos chamada Mirela dançando e hipnotizando todos que passavam pelo local. Quando recebeu de Bruna Lubambo, a ilustradora do livro, um dos primeiros desenhos, viu os pés de Mirela e concluiu: “É isso, o livro deu certo”. Não por acaso, Bruna frequenta a cena do passinho em Belo Horizonte, onde mora. “Quando soube disso, achei sensacional ver o universo jogando tão a favor”, conta Otávio, que descobriu Bruna pesquisando livros infantis em livrarias.
Para Thiago, De passinho em passinho é a possibilidade de essa poesia dançada chegar a um público que não tem muita noção do que seja essa dança, ao público infantil em geral e, principalmente, a possibilidade de quem pratica a dança poder vivenciá-la também na literatura: “Com o livro, a dança da favela vai para outro território”.
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É também um trânsito entre a arte do corpo, não verbal, e a escrita literária. “Uma das minhas preocupações foi como trazer a dança, que é movimento, corpo, espaço, para a escrita. Na imersão que fiz, eu, que não sei dançar, tentei visualizar, respirar a dança, até ser transportado até ela pela imaginação”, diz Otávio.
Matéria publicada na edição impressa #47 em maio de 2021.