Infantojuvenil,

Na batida dos bês de bell hooks

Apostando na oralidade e no movimento, autora mostra as possibilidades de ser menino negro

01out2019 | Edição #27 out.2019

Com dezenas de livros publicados, entre eles cinco infantis, a norte-americana bell hooks é uma das mais relevantes escritoras, educadoras e ativistas da contemporaneidade. No Brasil, até pouco tempo atrás era mais conhecida dentro dos círculos acadêmicos e feministas negros, porém, recentemente, passou a ter algumas de suas obras publicadas em português nas quais discute questões raciais, de classe e gênero, sobretudo sob uma perspectiva pedagógica.

O conteúdo amplo de seus outros trabalhos, aliás, é claramente atestado por suas publicações infantis. Cheias de sentimento e conforto, as obras também tratam de questões raciais, de aceitação, autoimagem e relações saudáveis. Sempre com meninas e meninos negros. 

Pelo selo Boitatá, da Boitempo, já temos Meu crespo é de rainha, livro que celebra os cabelos crespos das meninas — e que merecia uma versão para meninos também, já que meninos e homens negros ainda são pouco encorajados a deixarem seu cabelo natural crescer. O peso dos papéis de gênero, que demarca as imposições do trabalho, por exemplo, impede grande parte dessa conexão. No entanto, parte da mensagem que poderia ter sido transmitida em Meu crespo é de rainha vem agora com Minha dança tem história, mais recente publicação da editora.

Musicalidade

Nessa obra, o menino Bibói se apresenta a cada página. Ele joga com as palavras e com o ritmo e participa de batalhas de rima e dança. “Dá a letra” no “batuque, na batida”. 

O uso de palavras puxadas com o “b” de “Bibói” valoriza a oralidade e a exploração sonora, sendo o livro ideal para ser lido em voz alta com muitas possibilidades melódicas. O livro pede musicalidade, ainda que na leitura aparentemente silenciosa. E pode ensinar sobre diversas expressões musicais e artísticas que dialogam com seu título. Qual a dança de Bibói? Qual a história dela? Essas perguntas não estão respondidas com obviedade, o que é muito positivo. 

Livros devem sugerir a ampliação da conversa e, por que não, da leitura. Ler Minha dança tem história para uma criança é também uma oportunidade de conversar sobre instrumentos de percussão, rap, samba e tantas outras manifestações culturais que surgiram a partir da cultura criada por pessoas negras e que estão ligadas às suas raízes. Bibói deixa o espaço aberto para que tudo isso seja aprendido, contado e experimentado entre cores confortáveis, como marrom e laranja, em ilustrações cheias de movimento.

Mas os bês de Bibói não só dançam, eles saem do círculo e andam por aí. Eles falam sobre as muitas possibilidades de ser menino. Aqui destaco especialmente as muitas possibilidades de ser menino negro.

No Brasil, onde meninos negros são alvo de racismo cruel e assassino, Bibói é a humanidade para todos eles

Bibói se apresenta dizendo que é belo e do bem, sempre reforçando sua autopercepção positiva. Ele se enxerga como um menino “de boa”, que é “bem bonito”, com ênfase, e que é apaixonado por ser quem é. Mas como não seria? Ele é criativo, sabe usar as palavras e dançar, sabe quem é e não se perde, independentemente de estar sorrindo ou chorando. Ele é Bibói sorrindo e chorando. É Bibói mesmo quietinho no recreio. Porque não precisa estar sempre cheio de energia o tempo inteiro; tudo bem ter descanso e mostrar sensibilidade. 

Aliás, as ilustrações nos mostram os seus vários momentos. Com lágrimas nos olhos ou dançando de mãos dadas com outro menino, também negro, Bibói nos diz que seu coração é brilhante. Uma verdadeira música — uma batucada inteira — de estereótipos caindo por terra. Serve para adultos, que já estão com tantas imagens e adjetivos formados, além de ser uma linda apresentação de como se pode ser um menino para quem ainda está aprendendo. Abrir a vida das crianças para todos esses canais de expressão é fundamental. É o tipo de coisa que se aprende com os livros. É o tipo de livro que marca um menino de forma poética. Basta ler em voz alta e sentir todo esse ritmo, todos esses bês nos lábios.

Minha dança tem história é um dos livros infantis mais importantes que já li. Em tempos de #BlackLivesMatter e em um país como o Brasil, onde meninos e homens negros são alvos de um racismo cruel e assassino, Bibói é a devida e sincera humanidade para todos eles. É o conjunto de poesia e valorização cultural que diz que há beleza, criatividade, bondade e sensibilidade dentro e fora de si. E, como o coração brilhante de Bibói, essas qualidades também são vistas por outras pessoas.

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Jarid Arraes

Poeta e cordelista, é autora de Redemoinho em dia quente (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #27 out.2019 em setembro de 2019.