Infantojuvenil,

Fala, amendoeira

Fábula tradicional ganha versão contemporânea por ilustrautora portuguesa

28nov2018 | Edição #19 dez.18/fev.19

Em sua página na internet, a portuguesa Joana Estrela se apresenta como “ilustrautora”. O neologismo, que vem sendo usado por ilustradores que se aventuram a escrever, soa adequado depois da leitura de seu mais recente livro, primeiro a ser lançado no Brasil, A rainha do Norte.

A obra se baseia na lenda das amendoeiras, uma fábula portuguesa cuja origem remonta aos tempos em que a região lusa do Algarve era habitada pelos mouros. A história é simples: um rei árabe se apaixona por uma prisioneira nórdica de feições claras, que padece de forte nostalgia de sua terra. Ele decide, então, cercar o castelo de árvores de amêndoa, cujas flores brancas cobrem os jardins durante a primavera, relembrando a amada de sua paisagem natal.

Há um tempero estilístico interessante: a autora recomeça a história várias vezes, acrescentando capítulos a cada reinício

As ilustrações de Estrela em Rainha seguem o traço simples que lhe é característico, com a presença mais intensa de cores, algo pouco usual em seu trabalho. A simplicidade está também nos textos — curtos e pouco elaborados —, mas há um tempero estilístico interessante: a autora recomeça a história algumas vezes ao longo da obra, acrescentando novos capítulos a cada reinício. 

Ela também faz uso de rasuras, algo que já estava presente em Mana (2016), sua primeira incursão no universo infanto-juvenil, em que as páginas eram marcadas por rabiscos e adesivos colados por uma suposta irmã mais nova. Aqui, o “para sempre” característico das fábulas de amor eterno é riscado para dar lugar a “durante algum tempo”, uma intervenção crítica que também caracteriza a autora.

Ilustrações

Os desenhos, ainda que simples, são o ponto alto do livro: Estrela retrata uma multiplicidade de personagens, inclusive secundários, e diversos elementos visuais que conversam bem com o reduzido texto.

A maior fragilidade da obra parece estar na (falta de) potência narrativa. Se a fábula original é poderosa, algumas adaptações feitas por Estrela são pouco felizes. 

Na releitura da portuguesa, a prisioneira vira criada e uma história que poderia transitar por temas como saudade, tristeza e redenção pelo afeto acaba se resumindo, de forma simplista, a um quadro de depressão cuja solução está na psicanálise (quem salva a rainha é um médico de óculos freudiano que a tira do buraco por meio de conversas regulares).

Essa subversão poderia ser irônica ou até nonsense, mas não é o caso. Seria, então, um exemplo de “desprincesamento”, o movimento que corrige narrativas tradicionais para reposicionar as figuras femininas como protagonistas?

Tampouco parece ser o caso. Ainda que Estrela tenha retirado do rei a imagem de herói salvador, essa função é transferida para o médico, que resgata a rainha de sua tristeza profunda. Mais arrojado teria sido construir uma narrativa na qual a conquista da protagonista viesse de seus próprios méritos e esforços, em linha com livros como as obras em torno de Malala ou mesmo a interessante série Antiprincesas, que apresenta mulheres latino-americanas que foram destaque em suas áreas. 

Nesse contexto, a opção de Estrela — que integra uma geração de mulheres quadrinistas que flertam com questões urgentes como defesa de gays e igualdade de gênero — desaponta. A autora, que em seu primeiro livro, Propaganda (2014, Planeta Tangerina), abordou o quotidiano de uma voluntária da Liga Gay Lituana, poderia ter dado um passo além em A rainha no Norte.

Uma história que poderia transitar por temas como saudade, tristeza e redenção pelo afeto se resume a um quadro de depressão

Se a abordagem engajada se mostrou tímida, talvez o melhor caminho para essa fábula fosse optar pela via poética. Ainda que a poesia tenha, em nosso tempo, cedido lugar completamente às ciências, o universo infantil é o oásis onde essa máxima não precisa valer integralmente.

Como se vê, a fábula portuguesa das amendoeiras traz material para exploração de diversos temas e permite enfoques interessantes. Resumi-la um quadro de depressão clínica é uma simplificação por demais esquemática que, por um lado, esvazia seus ensinamentos e, por outro, enxuga a narrativa dos elementos lúdicos que são essenciais na literatura infanto-juvenil.

Se o chapéu de “ilustrautora” cabe em Estrela, ela ainda tem alguns desafios pela frente para fazer jus à qualificação no nicho específico da literatura infantojuvenil.

Quem escreveu esse texto

Helen Beltrame-Linné

Graduada em direito pela USP e em cinema pela Sorbonne-Nouvelle, foi diretora da Fundação Bergmancenter. 

Matéria publicada na edição impressa #19 dez.18/fev.19 em novembro de 2018.