Infantojuvenil,
Entre ser e não ser o outro
Dois livros para crianças que falam sobre identidades e são essenciais para os adultos
12nov2018 | Edição #5 set.2017Lá está Daniel. Esboça um meio sorriso para nós. Cabelos penteados e meias limpas, sem traços de ansiedade, ao lado de um (gigante) cachorro branco. Pronto para nos receber em sua história, no canto da capa de O menino perfeito. Que expectativas envolvem um menino assim? Depende.
Neste momento de dúvida nascem indagações: as expectativas sobre o menino perfeito variam da aceitação (ou não) do ponto de vista do narrador. No caso da história de Daniel, o ponto de vista escolhido por Bernat Cormand é o de um adulto — e não é qualquer adulto. O narrador onisciente, no texto e nas imagens, mostra um garoto que age de acordo com as exigências sonhadas por uma gente “grande” e rigorosa. Assim, Daniel faz sozinho o nó da sua gravata, não tem problemas na escola, ajuda nas tarefas da casa… Apenas olha para fora das tarefas quando o narrador, lacônico, reafirma: “Para todos, Daniel era o menino perfeito”.
São poucos os momentos nos quais Daniel nos encara, e nunca o faz com palavras suas. Já a nós, é permitido supervisionar todas as suas ações. Os cenários — acompanhados por um relógio que divide o dia — vão alternando entre o bege do papel de parede e os tijolos escuros das casas da vizinhança. Vemos Daniel de cima — como alguns adultos olham as crianças — ou pequeno, sendo puxado pelo cachorro. Tudo é frio, distante, ao mesmo tempo que nos é familiar: quando se convive, como conquistar o vínculo com o outro?
Daniel nos enfrenta quando o narrador, talvez à revelia, conta que o menino tem um segredo. Percebemos olhos assustados, que agora se tornam expressivos. Começamos a conhecê-lo aqui. Qual segredo? Subitamente, ele aparece vestido de menina. Interpretar o que virá fica a cargo do leitor. Daniel deixa de ser um menino perfeito? Ou é um menino perfeito por guardar segredos? Ele vai se tornar perfeito no momento em que sair do livro, com a certeza de que será aceito? (Pois não é esta, sempre, a insegurança que carregamos?)
O menino perfeito joga todo o tempo com as nossas expectativas. Muito a romper para descobrir que não há perfeição (ou que a perfeição existe, mas é chata e bege), só descobertas e experimentações. Ao partilhar seu segredo, Daniel nos convida para investigar, com ele, nós e tantos mais, o caminho. Já em Feliz aniversário, João!, o protagonista vive num mundo vibrante: o vemos pela primeira vez em cima de uma árvore, nos encarando com segurança. Está prestes a pular?
Entramos na vida de João que, se não é dividida pelo rigoroso tique-taque do relógio, é marcada pela dúvida que cresce com ele: por que meninas podem fazer coisas (usar rosa, brincar com boneca, ter cabelo comprido, colocar vestido) vetadas aos meninos? As autoras, Júlia Rosemberg e Priscilla Bertucci, constroem uma narrativa na qual o protagonista acha espaço para se expor. Ele se apresenta sem duvidar de quem é (“Meu nome é João”) e, por isso mesmo, experimenta a coragem de tentar ser outros.
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Aliás, como preencher um nome? Para além (ou dentro) dessa pergunta cabem muitas respostas, e é em busca delas que João está: “Eu só queria saber como seria…”. Da mesma forma que Daniel, João ensaia possibilidades. Se, para Daniel, experimentar algo é secreto, pois não está previamente indicado por alguém maior, João testa suas vontades. Mas não o escutam. A pergunta vira proibição, que vira lágrima. O choro é suave, pois “tinha ouvido dizer que meninos não choram”.
Onde carregamos nossa tristeza mais íntima, a de não entenderem nossa pergunta mais fundamental? A solidão de Daniel e de João é imensa
As ilustrações, minimalistas mas marcantes nas profusas cores e situações, fazem o contraponto a esse sentimento branco e tão profundo: onde carregamos nossa tristeza mais íntima, a de não entenderem nossa pergunta mais fundamental? A solidão do segredo de Daniel e da vontade dita — mas não ouvida — de João é imensa. Se Daniel conta apenas conosco, João tem a sorte de encontrar o primeiro e necessário ouvinte para lhe abrir caminhos. Alguém que, como a cartunista Laerte define, não vê crianças (pessoas, eu diria) como “uma plantazinha que é só regar e proteger das lagartas”.
Ao oferecer livros assim para leitores iniciantes, não estamos nos lendo, e de novo, pela primeira vez? Que expectativas envolvem uma criança e a nós mesmos, por fim? Como se aproximar para ler, como se distanciar para ouvir? O convite está sempre feito e não sabemos o que virá — é do que ambas narrativas nos lembram, assim como tantas vezes, a vida.
Matéria publicada na edição impressa #5 set.2017 em junho de 2018.
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