Literatura infantojuvenil,

Não (não) é não

Surgido de uma brincadeira entre pai e filho, livro joga com a perspectiva de transformar respostas negativas em positivas

01dez2020 • Atualizado em: 05jun2023 | Edição #40 dez.2020

Um livro. Amarelíssimo, formato generoso, textura macia, tudo convida a tocar. 

Pegue. 

Se você tem intenção de se concentrar nas palavras, vai notar que uma junção de letras forma um termo engraçado, bem lá no alto da capa. Nanão. Ele está escrito com letras que, talvez para muita gente, seja estranho figurarem como destaque. É que essa palavra é feita, diriam, com um traçado… imperfeito. Cadê a letra maiúscula, cadê a minúscula? É nome? Define o quê? 

Olhe de novo.

E se aquilo que é tão automaticamente caracterizado como imperfeito for um convite?

Então, não se demore apenas nas palavras. E perceba que o livro que tem nas mãos mistura cor, forma, toque, traço. Nele, o inusitado desenho das letras, que em preto dançam no amarelo, é convidativo, intrigante, aconchegante. E se completa por outro desenho, logo abaixo do escrito, tão diverso quanto divertido. Olho redondo, vivo e preto, duas pernas, corpo quadrado e branco. Nanão. É bicho, é gente, é personagem? Pois talvez seja tudo isso: é invenção.

Infinitas peças 

O livro que nos oferece Gustavo Piqueira, elaborado a partir de história e desenhos criados por seu filho, Milo Arantes Piqueira, traz mais perguntas que respostas. Nanão nos é apresentado como axioma: diz “não” para tudo. Nem mesmo as propostas mais tentadoras transformam as  suas respostas. Até que alguém descobre: e se mudarmos as perguntas em vez de esperarmos pelas respostas certas, em que o não é (sempre) não? O enredo, lógico como uma evidência, desmonta-se em infinitas peças. Está feita a brincadeira. 

Brincar, como percebe Nanão, é entender o outro e a si mesmo, sempre imaginando pontos de partida inusitados. Um jogo que nos faz melhores e possibilita, como propõe o escritor italiano Gianni Rodari (1920-80) em sua Gramática da fantasia (1973), sermos aqueles que se colocam “abertamente ao lado das crianças, defendendo-as como criadores ativos com capacidade de transformar o mundo, desordenado, violento, impositivo e incoerente que os adultos sempre quiseram impor a elas”. 

Não há limites traçados pela lógica ou pela convenção, e os desenhos de Nanão se transformam ao correr das páginas, antes mesmo da consciência do personagem — ou ele sempre soube de sua possibilidade criadora, de toda a sua função simbólica? Ora ele está encarapitado no topo, ora de ponta-cabeça, ora se equilibrando nas laterais. Seus nãos também saem diferentes a cada feita: carrancudos, decididos nos traços que cortam a página e reforçam a negativa. Até que Nanão se vê sozinho, no meio do livro — o branco, a imensidão solitária. O que vai acontecer?  

E se mudarmos as perguntas em vez de esperarmos pelas respostas certas?

Mais uma pergunta. Fazer perguntas é por onde seguem as crianças em seus intentos de decifrar o mundo. E nós, adultos, esquecemos isso? “Conservar dentro de si o espírito da infância por toda a vida é poder conservar a curiosidade pelo conhecer e o desejo de comunicá-la”, diz o designer gráfico, artista e pedagogo italiano Bruno Munari (1907-98), enquanto monta, ele e diversas crianças, uma de suas invenções: os pré-livros, pequenos objetos elaborados com páginas de materiais coloridos, táteis e de diferentes formatos, com os quais as crianças brincam e exploram o infinito território que é um livro, apropriando-se da própria criatividade. 

Nanão nasce de uma brincadeira entre pai e filho. É jogo que vai criando forma e cor nos desenhos da criança, nas provocações do adulto, no percurso costurado entre os dois. O livro nasce dessa troca, que é sustentada como cordão narrativo invisível, elo que liga Nanão ao leitor. 

Um filho abre o horizonte criativo para o pai e, ao oferecer brincadeira, faz também literatura. Fazer, aliás, que nos revela genuínos percursos do que é a literatura com crianças, e não apenas para crianças. Literatura que nasce fantasia, é laboratório, experimentação. Modo de inventar realidades e abracadabras contidos nas múltiplas formas de uma palavra, de um desenho, que são, por sua vez, aberturas para um mundo mais criativo e tolerante.

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social.

Quem escreveu esse texto

Malu Rangel

Doutora em teoria literária, é editora de livros infantis.

Matéria publicada na edição impressa #40 dez.2020 em novembro de 2020.