Infantojuvenil,

A ovelha é a cor mais quente

Livro dá outra envergadura a personagem requisitada na literatura, contando uma jornada de resistência e falando, nas entrelinhas, de sexualidade e gênero

01maio2020 | Edição #33 mai.2020

Era uma vez uma ovelha. Nem branca nem negra: ela era colorida. Suas pegadas no chão, desajeitadas, cruzam a página em branco do início e anunciam a viagem de alguém em busca de seu lugar. Na conversa entre um texto minimalista, fotografias despretensiosas e ilustrações inventivas, Ovelha colorida dá outra envergadura a uma personagem tão requisitada na literatura infantil. Vem nos contar de forma simples e poética uma jornada de resistência e, nas entrelinhas, quer nos falar sobre diversidade sexual.

O livro nasce dessa ferida de se sentir diferente e rejeitado. A autora, Carolina Portella, não soube o que responder ao menino de dez anos que, durante uma atividade de mediação de leitura que ela dirigia, lhe pediu um livro sobre homossexualidade. À falta de resposta somou-se a própria história de vida dela: mulher, negra, periférica, lésbica, educada no seio de uma igreja evangélica. Inúmeras particularidades que a fizeram sofrer e a obrigaram a abandonar seu rebanho para se encontrar. Assim começou a escrever seu livro de estreia.

Mas seria pouco classificar a obra como literatura LGBT. As cores da ovelha, polissêmicas, excedem o arco-íris do movimento gay: são um elogio à vastidão de nossas diferenças.

Ovelha colorida nasce também de coisas nas quais nos aventuramos sem uma preparação formal ou ortodoxa. À exceção do ilustrador, nem a fotógrafa Mariana Rhormens nem Carolina Portella são profissionais da área (ambas trabalham com teatro e arte-educação). Talvez daí venha o caráter imaginativo e livre da obra. Por vezes, contudo, sua força é eclipsada por certo tom pedagógico.

Viajar é preciso

A viagem tem lugar central no livro. Viagem espelhada, interna e geográfica. Pelas mãos do artista Felipe Tognoli, a ovelha atravessa múltiplos cenários, deixando em cada caminho sua história, suas pegadas, suas sequelas.

São paisagens fotográficas em branco e preto que quase sempre escapam da beleza óbvia e do olhar do turista. É assim que a ovelha anda por Brasil, Chile, Peru, Moçambique, Senegal, África do Sul. Há placas de trânsito, xícaras, arame farpado. Na proximidade entre América do Sul e África, no cruzamento entre temas e espaços periféricos, vemos a veia mais conhecida da editora Kapulana. A única imagem europeia, um parque londrino, isola-se no livro feito uma roupa esquecida no varal.

Felipe, dono de um traço simples que se avizinha do rabisco de criança, faz pequenas intervenções sobre as fotografias. Um campo de flores brancas torna-se um rebanho, janelas abrem suas bocas, pneus estendem braços, e pedras viram coelhos ou outros animais estranhos. O leitor, como quem procura formas nas nuvens, é convidado a brincar de descobrir os seres imaginários que circundam a ovelha.

Essa habilidade do ilustrador em aproveitar com inteligência o espaço criado pela fotografia evoca curiosamente uma série de artistas que ancoram seu trabalho nas ruas, e não no papel. O mais evidente é o britânico Banksy, que faz dos buracos de um muro parte do grafite; também o português Vhils, com sua técnica de esculpir o muro e incluir a textura das paredes nas formas que inventa.

Mas foram sobretudo os exercícios simbólicos do pedagogo italiano Gianni Rodari (1920-80) que inspiraram Felipe a “ocupar o espaço” da página tal como a criança o faria. Não se trata propriamente de uma atividade ingênua: os dentes são afiados; os olhos, vigilantes. Por onde passa, a Ovelha Colorida é rodeada por uma sociedade que a reprova.

Durante a viagem, a personagem encontra um lago e nele se vê refletida: momento de autodescoberta e inspiração. Mas a Ovelha Colorida não é o Patinho Feio de Andersen, por fim inserido no bando de cisnes. Tampouco Narciso, paralisado sobre a própria imagem. Ao se descobrir, o que ela faz, de novo, é viajar.

Viagem de regresso, por montanhas, muros, grades, varais. As fotografias nunca se repetem. Afinal, na vida, o caminho de ida e volta não é uma linha reta que se possa reproduzir. O mesmo é dizer: voltar é para sempre ir.

Os olhos vigilantes continuarão ali. A ovelha, contudo, é outra. Munida do irremediável de sua descoberta, também vê o mundo de forma menos ameaçadora. Aos poucos, a paisagem vai ficando colorida, como se a personagem partilhasse ao redor sua própria cor. É a vez da frase corajosa “Há lugar para todos, todas e todes”, que com um pronome acolhe a multiplicidade das identidades de gênero.

A ovelha está sempre de passagem. De repente, somos surpreendidos pelo sentido mais profundo da viagem: talvez o único lugar onde possamos nos sentir em casa, acolhidos em nossa singularidade — física, emocional, sexual — não seja propriamente um lugar, mas um modo de estar no mundo, como um viajante que espalha, colhe e inventa suas cores e raízes.

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Marana Borges

Prepara o lançamento de seu romance Mobiliário para uma fuga em março pela Dublinense.

Matéria publicada na edição impressa #33 mai.2020 em abril de 2020.