Infantojuvenil,
A lírica dos bichos
Em versos que brincam com a poesia de João Cabral, Secchin narra o drama de um galo incapaz de tecer a manhã
29out2018 | Edição #16 out.2018Em 2017, Antonio Carlos Secchin quebrou um silêncio poético de quinze anos com a publicação de Desdizer, coletânea com 31 poemas inéditos. A edição traz ainda toda a produção anterior do poeta, imortal da Academia Brasileira de Letras, apresentada em ordem cronológica reversa, remontando aos anos 1970. Disposição curiosa, que joga com a ideia do “desdizer” da obra inédita e embaralha a percepção do conjunto ao desarmar a noção de amadurecimento, sempre à espreita em antologias.
Mas em Desdizer a desdita tem a ver também com a variedade temática e estilística, que evita a consagração de qualquer dizer poético particular. Daí que, entre a nova safra de textos, encontre-se o simpático O galo gago, excursão do autor ao universo das narrativas infantis, que agora vem a lume.
Em versos rimados, O galo gago narra o drama de um galo infeliz, que, lamentavelmente gago, não canta com a propriedade e a convicção necessárias para tecer a manhã. A Noite personificada quer encerrar expediente, mas se exaspera: “Para que possa chegar o Sol/ e o escuro escorrer para o ralo,/ não adianta galinha nem bem-te-vi,/ eu quero ouvir a voz de um galo”.
Em assembleia, a trupe bola estratégias para resolver o impasse; tudo fracassa, o galo se deprime, até que a sempre sábia tartaruga tem uma ideia: entra em cena o papagaio, que, imitando o camarada em penas à perfeição, conjura a manhã. E então é festa.
Simples e singela, a narrativa guarda espantos infantis, como quando a Noite, já exausta, diz que vai partir, mesmo que o Sol não venha, lançando a bicharada numa perplexidade metafísica: “Toda a mata matutou:/ se a Noite vai e o Sol não vem,/ qual seria a cor de um céu/ habitado por ninguém?”. Há piscadelas para a tradição do gênero: na celebração matinal, a raposa dança com o corvo, par de personagens de uma fábula de Esopo. Duas estrofes adiante, numa microrreleitura de outra fábula célebre, a cigarra aproveita para vender seu peixe e ensinar uma lição à formiga trabalhadora: “A cigarra, maravilhada,/ falou à formiga, em cicio profundo: ‘Uma canção também é trabalho,/ ela pode mudar o mundo’”.
Metalinguagem
No final, uma saborosa pilhéria metalinguística: o poeta é expulso pelo papagaio — “Hoje a festa é só dos bichos,/ nosso esforço valeu a pena. Você, seu bicão, saia logo,/ e vá cantar noutro poema”.
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A moral implícita da história pode ser sintetizada no verso de João Cabral de Melo Neto: “um galo sozinho não tece uma manhã”. Ele precisará sempre de outros galos, ou, talvez, de um papagaio. E de um poeta. No que O galo gago se apresenta também como bem-humorada homenagem ao autor pernambucano, que tem em Secchin, por sinal, um de seus críticos mais prolíficos e minuciosos.
Passeando com bastante graça pelo universo da fábula, o poema vem bem acompanhado pelas ilustrações de Clara Gavilan, que, ao contrário de certa tendência na ilustração infantil, opta por não arriscar no traço: se convencionais, os desenhos não obstante se casam bem com a despretensão e a leveza da narrativa e com certa vocação para clássico (O galo gago é daquele tipo de história que parece ter sempre existido, embora ninguém nunca a tenha de fato escrito).
Se há ressalvas a fazer, talvez seja para lamentar que o poeta não tenha experimentado mais as possibilidades cômicas da gaguez propriamente dita, ao modo do Noel Rosa de “O gago apaixonado”. No mais, O galo gago é uma festa infantil à manhã cabralina, “de um tecido tão aéreo/ que, tecido, se eleva por si: luz balão”.
Matéria publicada na edição impressa #16 out.2018 em outubro de 2018.
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