Literatura brasileira,

A cidade no verso do mapa

Em viagem ao Rio de janeiro, resenhista é transportado a Roma recriada pelo 'bambino brasiliano' no novo livro de Chico Buarque

30ago2024 | Edição #85
Chico Buarque aos dez anos, em Roma (Divulgação)

Há muitos anos sem visitar o Rio, quando desembarco, só penso em largar as malas no hotel e caminhar pela cidade. Antes sou protocolarmente assaltado pelo taxista no Aeroporto Santos Dumont: setenta reais pelo trajeto do Centro a Copacabana. Hesito, mas não tenho firmeza moral para recusar: ponho as malas no bagageiro e subo no táxi. A verdade é que os taxistas do Santos Dumont contam com um aliado infalível nesse esquema de tarifas superfaturadas: a paisagem do Rio, que amolece o visitante ainda nos ares.

Malas no hotel, sigo pela rua Visconde de Pirajá, pois quero conhecer a Livraria da Travessa em Ipanema. Descubro que caminhar pela rua Visconde de Pirajá tendo como destino a Livraria da Travessa em Ipanema é uma boa ocupação. Faria isso muitas vezes. Quando adentro a livraria, encontro em peso nas primeiras gôndolas a safra fértil da literatura brasileira contemporânea. Mas a concorrência é pesada, pois alguns passos distraídos a mais trombo numa pilha de livros: é Bambino a Roma, de Chico Buarque, prometido para agosto, mas já à venda naquela sexta-feira, 26 de julho. Compro o livro e me lanço à leitura ainda no café da livraria.

O flerte com o duplo, com as identidades levemente desalinhadas, é um tema recorrente nos livros do autor

No romance, o autor emaranha memória e ficção para pintar os dois anos em que foi menino na capital da Itália. Há uma cena que sugere bem o espírito da obra: a certa altura, o pequeno brasiliano acompanha a mãe à papelaria, vão comprar material de escritório para o pai, então professor-visitante na Universidade de Roma. Na papelaria, descola um grande mapa da capital. Em casa, o menino vira o mapa e brinca de urbanista:

Eu já havia desenhado outras cidades em cadernos escolares ou nos papéis ofício do meu pai, mas não numa superfície daquelas dimensões. Agora, no verso do mapa de Roma, eu projetava minha cidade imaginária, que por acaso também era cortada por um rio com uma ilha no meio e tinha muitas praças com fontes, além de basílicas, arcos, muralhas e ruínas aqui e ali.

No verso do mapa, o brasiliano inventa outra Roma, também com fontes e basílicas, mas com o traçado ligeiramente diverso. Seus irmãos zombam fraternalmente: é um “arremedo de Roma”. O menino, pela voz do narrador adulto que lhe traduz a cisma pelo ofício do mapa, não se abala: “Eu estava impregnado de Roma, eu a recriava de dentro para fora.”

Conjuração imaginária

Se o mapa é a Roma conhecida, o verso do mapa é o espaço da ficção, uma conjuração imaginária que brota do interior da memória. Bambino a Roma segue esse traço desalinhado. Acaba sendo uma forma de resistência ao olhar do leitor que, ao abrir o livro avidamente, quer em tudo ler as memórias do compositor de “Sem fantasia”. Mas não estamos no mapa, estamos no verso, há fantasia, e se pode até dizer que a forma discreta e irônica com que Chico sempre soube envolver literariamente sua persona mítica é uma das estratégias que moldou o estilo de seus romances.

Na abertura do livro, é agarrado à bola de futebol que encontramos o pequeno Francisco, prestes a embarcar para o país onde quis ser Frank para os alunos da escola americana em que o matriculam, mas onde acaba sendo mesmo Francesco, entre 1953 e 1954. O flerte com o duplo, com as identidades levemente desalinhadas, é um tema recorrente nos livros do autor. O escritor fantasma entre o Rio e a capital húngara, em Budapeste (2003), também ali às voltas com questões tradutórias e adaptações ao estrangeiro. O irmão alemão, também cantor de sucesso, que leva certo Francisco de Hollander a Berlim, em O irmão alemão (2014).

De bola na mão, o menino leva um bom pedaço de Brasil — de infância brasileira. No convés, olha não a baía que se afasta, mas “a espuma que o transatlântico fazia no mar, como que desarranjando o caminho de volta”. Não há caminho de volta, mas não há também nostalgia, quando a narração se cola ao ponto de vista do bambino: em Roma, os episódios se sucedem sob o signo da comédia humana, tudo é absorvido e despido de trauma pelo olhar faminto do rapazote brasiliano, o mesmo olhar que está sempre conferindo as notícias na banca de revistas — a morte de Stálin, o assassinato da jovem Wilma Montesi, o suicídio de Getúlio. A história é um espanto em manchetes de jornal, mas mais importante é o amor por Sandrene, a dança com a atriz Alida Valli, mãe de Carlo, amigo de escola, a partida entre Brasil e Hungria na Copa de 1954 e os passeios pela cidade com a bicicleta niquelada que rouba o lugar da bola de couro no pódio dos objetos mágicos da infância.

No tempo presente, o narrador, agora um velho com artrose nos joelhos, regressa à cidade em busca não sabe bem de quê

Seguindo os passos do menino, há, porém, o narrador adulto, que ao longo do livro é a sombra triste de seu pequeno herói, um narrador que olha para os camaradas de infância da escola americana e escreve:

Não só o Kazuki, mas todos ali aparentavam estar em Roma de passagem. […] Eu gostaria de conhecer o destino do Sam, do Jim, do Roy, do Teddy, do Dan, do Archie, teriam todos voltado para a América? Teriam feito a Guerra do Vietnã? Quem virou hippie? Quem tomou heroína? Quem morreu de aids? […] Mas disso nunca vou saber, porque para mim eles ficaram sendo Jim, John, Joe, Bob.

Essa modulação melancólica — anunciada no “vago mal-estar” mencionado no fecho magistral do capítulo 21 — vem ao primeiro plano no epílogo do livro, quando ficam para trás o bambino, o Brasil das anuais marchinhas de Carnaval, a Roma do verso do mapa. No tempo presente, o narrador, agora um velho com artrose nos joelhos, regressa à cidade em busca não sabe bem de quê.

Numa sequência de cenas emblemáticas — o passeio de bicicleta pela Roma engarrafada, a visita ao apartamento onde morou na Via San Marino e o encontro com Amadeo, o filho do quitandeiro, amigo de infância —, encontramos não o menino, mas uma nova encarnação de certo personagem que já conhecemos de outros livros do autor, a figura desorientada e angustiada que se lança numa fuga incansável em Estorvo (1991), ou o escritor que vaga embriagado por um Rio de Janeiro esquizofrênico em Essa gente (2019). Aqui, em contraste com o bambino, essa figura ganha nova dimensão e fecha um dos pontos mais altos na obra do autor.

De volta ao Rio

Entre o momento em que saí da Livraria da Travessa com Bambino a Roma na sacola e o voo de volta para São Paulo, devo ter estado no Rio, mas tenho a impressão de que estive mais em Roma.

Na orla de Copacabana, caminhei lendo o livro, esbarrando em cariocas a cada cinco passos. Passei pela estátua de Drummond, mas não vi o poeta. No Parque Lage, sem perceber, me juntei a uma fila quilométrica de turistas buscando a foto icônica na piscina de Gabriella Besanzoni — acabei fotografado ali, lendo Bambino a Roma. No casório em Santa Teresa, razão da minha presença na antiga capital, fiquei isolado a um canto, sempre lendo Bambino a Roma, depois de ajustes com um garçom para periódicas remessas de empadinhas e uísque. Terminei a leitura quando o avião já zarpava, e só no ar voltei a ver de novo o Rio de Janeiro.

Quem escreveu esse texto

Odorico Leal

É doutor em literatura brasileira pela USP.

Matéria publicada na edição impressa #85 em setembro de 2024.

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