História, Psicologia,
Sonhos medonhos
Compilação de relatos oníricos de cidadãos alemães sob Hitler retrata com nitidez o totalitarismo
01jul2017 • Atualizado em: 21ago2024 | Edição #3 jul.2017“O sonho é uma realização de desejos.” A frase de Freud sintetiza a premissa de A interpretação dos sonhos (1900), que consolida a perda da ingenuidade iniciada por Copérnico, no século 16 — a Terra não é o centro do universo — e retomada por Darwin no 19: somos descendentes dos primeiros antropoides. Ao afirmar que desconhecemos a motivação inconsciente de nossos atos, Freud inclui uma terceira desilusão na série: a evidência de que não somos senhores nem de nosso próprio eu.
O inconsciente, este Outro que nos habita, tem papel mais importante na determinação de nossos atos, palavras e pensamentos que a firme vontade do Ego. Os sonhos, velhos portadores de enigmas e premonições, nos trariam a “má notícia” da falta de autonomia da consciência: apesar de vigilante, ela não é totalmente capaz de se precaver contra as formações do inconsciente.
O inconsciente nos habita e as representações recalcadas se manifestam por sintomas neuróticos, atos falhos e sonhos. Sendo Freud quem é — um demolidor de ilusões —, não adianta tentar tingir de rosa a “realização de desejos”. Se recalcamos desejos, é porque estão em conflito com os ideais narcísicos do velho Ego freudiano. Sonhos imorais, ilegais e até, por vias indiretas, angustiantes (pesadelos) “realizam desejos”. “O autoconhecimento”, me disse com humor um antigo analisando, “é sempre má notícia”.
Não é preciso torcer a teoria para incluir entre as realizações prazerosas de desejos os sonhos coletados pela jornalista Charlotte Beradt. Ela entrevistou, em sigilo, cidadãos alemães que, quando Hitler foi eleito, em 1933, se dispuseram a coletar os seus sonhos, sempre marcados pela angustiante intuição do que estava por vir. Intuição que se confirma em sonhos dos anos seguintes, pois a pesquisa estendeu-se até 1939.
Elaboração onírica
Os sonhos da maior parte dos entrevistados não são movidos pela necessidade de realizar, simbolicamente, prazeres proibidos. Aqui, a função da elaboração onírica é outra: tornar representáveis para o sujeito a experiência ou a antecipação do horror — que muitos preferiam ignorar.
Para Freud, “realizar desejos” não significa apenas torná-los representáveis, mas permitir a passagem de um sistema psíquico (o inconsciente) a outro (a consciência). Pela rigorosa metapsicologia freudiana, expressar desejos recalcados tem o efeito de realizá-los. O que se satisfaz através do corpo é a pulsão. O plano de realização de desejos é simbólico. Até mesmo um sonho que se limite a representar uma situação de risco, que o sujeito se sente incapaz de compreender, se presta à função de “realização de desejos”.
Em sua excelente apresentação, o psicanalista Christian Dunker sugere que os sonhos compilados no livro “apenas ressoam e testemunham como a falta de sentido experimentada na vida social ordinária era tratada pela falta de sentido dos sonhos, ou seja, que nem todos os absurdos são equivalentes”. No caso dos sonhadores que viveram em vigília o pesadelo do Terceiro Reich, a função central do sonho talvez fosse assegurar que não estavam loucos. Um médico sonha que as paredes de casa se dissolveram, não por acidente, mas em obediência a um “edital sobre a eliminação de paredes”. Ele não estaria expressando a percepção, recalcada porque horripilante, da máquina de vigilância totalitária?
Não se trata, aqui, do recalcado sexual. Ou não só. Beradt revela que a realidade do sistema totalitário se impõe às formações do inconsciente como retorno sinistro do Pai da Horda Primitiva, tornado possível quando o Estado concede a seus agentes a prerrogativa de agir fora da Lei. Não me refiro ao Código Penal, mas à Lei que barra o incesto e, com ele, os excessos de gozo — inclusive a crueldade. Em regimes totalitários, não há limites ao gozo do Outro — seja o Estado, seja o führer, seja o tirano. Eis a descrição mais sucinta do desamparo generalizado nos regimes de exceção: o Outro está autorizado a gozar além do permitido, e o cidadão indefeso se vê como a provável vítima dessa orgia sadiana.
Terror nos sonhos
Esses sonhos cumprem funções protetoras, ainda que angustiantes e desagradáveis. Por exemplo, detectar perigos que os sistemas de defesa do ego impedem o sujeito de notar. Expressar o terror — o mesmo que o sujeito experimenta em vigília, mas talvez não consiga pôr em palavras. Quando o terror instituído na vida social se reproduz nos sonhos, o Estado consumou seu objetivo totalitário.
O sujeito por vezes aciona fantasias onipotentes de resistência. Uma mulher sonha com a repetição da frase “Precisamos protestar”. E relata um sonho em que foge de barco, munida de uma faca de cozinha quebrada, com que perfura, não um agente da SS, mas uma “camisa esportiva”. “Meu camarada diz: ‘Desculpa’ digo: ‘Tanto faz se eu olho ou ajudo’. O homem [esfaqueado] cai. Vem o próximo; dessa vez, ajudo, como era de se esperar. Assim liquidamos todos, um após o outro.”
Ao fim, ela parece não suportar a violência a que os dois recorreram para se salvar. O sonho inventa então que o barqueiro não era algoz — também queria fugir. Ela conclui: “O homem […] nos parece tão sincero, tão amedrontado, que acreditamos nele”. Beradt observa que a figura do homem obrigado a conduzir o barco seria a prova de que a mulher “via claramente esse aspecto da situação”. Tais figuras “nós agora conhecemos bem”: delatores de vizinhos e colegas de escola, que colaboram com a repressão.
Há sonhadores que tentam concordar com a lógica do terror, como se o sonho aliviasse a angústia, ao minimizar a oposição entre os sujeitos (judeus, perseguidos, ameaçados) e a ordem nazista. “Concordar” seria (hipótese minha) um artifício para reduzir os riscos a que estavam expostos em vigília. Na mesma linha, há sonhos que tentam atribuir sentido ao projeto absurdo do Terceiro Reich. Entre os relatos de resistência e de indignação, a autora registra sonhos que revelam desejos de trair. Mudar de lado e se salvar. Não temos o direito de censurá-los.
Uma moça sonha que, numa celebração do regime, ri de uma canção política, depois se junta ao coro. Um homem sonha que é nomeado guarda-costas de Göring. Outra grita, no ônibus, “alto, para todos os passageiros: Heil, Hitler”. Um homem sonha apenas com a frase “Não preciso mais dizer sempre não”. “A liberdade como peso, a servidão como alívio”, conclui a autora.
No posfácio, o historiador Reinhart Koselleck elogia a decisão da autora de se recusar a apresentar os sonhos recolhidos como “testemunhos de conflitos pessoais”. Eles revelam a cena política da época. Em vez de realização de desejos, talvez seja preciso considerar o “valor de prognóstico” do sonho. O totalitarismo pode ter lhe devolvido o seu mais antigo sentido: o da premonição que traz à consciência o que ninguém ousa imaginar em vigília.
Matéria publicada na edição impressa #3 jul.2017 em junho de 2018.
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