História,

República em construção

Dicionário conta em 51 textos críticos a formação do sistema republicano, visto como um dos grandes desafios da atualidade

11nov2019 | Edição #29 dez.19/jan.20

Dicionaristas e historiadores costumam ser ambiciosos e atormentados. Os primeiros pretendem recolher todas as palavras de uma ou mais línguas, com a certeza de que a todo momento os falantes estão criando novos termos. Terminada sua empreitada, terão escapado as palavras mais jovens e ágeis. Como Tântalo, os dicionaristas se veem se afastando da saborosa fruta cada vez que mais dela se aproximam. Os historiadores se propõem desafio mais complexo: colher objeto ainda mais fugidio — um momento que já passou — e nos entregar um retrato tão nítido quanto possível de algo que não existe mais. Como o pássaro do amor de Carmem: quando você pensa que o prendeu, é ele que te prende.

Nós continuamos, porém, a nos divertir, a correr atrás de pássaros, amores, palavras e histórias. Encontramos um Dicionário, de costume rombudo e exaustivo, mas que agora nos poupa de um tropeço que nos leve a mergulhar em seu oceano de miúdas letras, enfileiradas pelo rígido molde de As, Bs e Cs até um distante Z.

Em vez disso, um redemoinho parece ter espalhado as letras a nos desafiar para montar um quebra-cabeça que, no final das contas, vai nos levar a criar um retrato do momento desafiador da história brasileira, tão complexo por estar ainda em construção, sujeito a intempéries: a República. Palavra por sua vez também arredia e esquiva, como dizem no prefácio as organizadoras, Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling, ao escarafunchar suas origens gregas e latinas e encontrá-la abraçada com democracia.

Não à toa, as organizadoras deram ao prefácio o título “Em busca da República”, o mesmo de outra coletânea organizada pelos economistas Edmar Bacha e Pedro Malan, pelo historiador José Murilo de Carvalho, pelos advogados Joaquim Falcão e Marcelo Trindade e pelo sociólogo Simon Schwartzman, publicada recentemente pela Intrínseca. Nesse outro, a opção foi fatiar a fase republicana em períodos de dez anos, entregando cada parte a especialistas responsáveis por diferentes áreas, como economia, política e sociedade, em diversos textos igualmente curtos.

No Dicionário da República brota um redemoinho que espalha textos curtos e diversos, ora acumulados na letra C ou na M, pulando o B, ora concentrados no P, esquecendo os desafios do Q e do Z. Mas o saci brincalhão que surge do meio do redemoinho nos leva a surpresas que vão desde conhecidas referências como Kenneth Maxwell, José Murilo de Carvalho, Evaldo Cabral de Mello, Marilena Chaui e João Fragoso a jovens brilhantes como Silvio Almeida e Keila Grinberg. Transportam-nos do século 17 ao 21 no espaço de duas páginas, às problemáticas de gênero e raça, da cena mundial aos grotões de Formoso e Trombas, em Goiás.

Subversão

Estamos em tempos da cozinha molecular, onde um bife pode ser servido numa taça de espuma. Tempos de esportes radicais, em que saltos e solavancos se superam para levar emoção a um público que já não se satisfaz com meras pistas e campos tantas vezes batidos. Mesmo diante da amplitude dos temas e os debates urgentes sobre gênero e raça, o Dicionário compensa o que, eventualmente, abre mão em matéria de ordenamento.

A primeira grata surpresa está logo na letra A de Associações de Homens Livres de Cor.  O historiador Petrônio Dominguez coloca em seus devidos lugares tijolos da história republicana esquecidos em algum terreno baldio da memória. Encontra no Rio de Janeiro, em São Paulo e no Rio Grande do Sul os líderes de movimentos republicanos, seus jornais e plataformas e os reposiciona em seus devidos e merecidos lugares.

Pulamos para o C das Conjurações. “Conjura-se, explica Maquiavel (1469-1527), para depor o governante, tomar o poder por meio da ação violenta e recuperar a liberdade perdida”, esclarecem as organizadoras. No primeiro artigo, sobre a Cabanagem, a historiadora Magda Ricci nos dá uma pequena mostra do que era ser republicano durante a monarquia brasileira, mesmo na remota província paraense, distante meses de viagem por barco a vela da sede da corte no Rio de Janeiro.

Era tão subversivo ser republicano, quase um xingamento, sob o Império dos Pedros, como ser comunista durante a ditadura militar. Fuzilamentos sem julgamento, tortura, exílio, perseguições eram o que se reservava aos republicanos que teimavam em se expor.

Em Belém, capital da imensa província do Maranhão e Grão-Pará, que dominava todo o litoral norte do país e o imenso sertão amazônico, concentravam-se agudamente as contradições que marcaram a Independência do Brasil. Mais próximos de Lisboa e da propaganda constitucionalista dos anos de 1821 e 1822 que emanavam da capital portuguesa, assim como das agitações republicanas dos vizinhos colombianos, os paraenses resistiram a engolir o centralismo do Rio de Janeiro imposto pelos que coroaram Pedro 1º. E não se deixaram seduzir pela propaganda da unificação do então Império, supostamente liberal.

Pagaram caro por isso. Primeiro na expedição do mercenário inglês John Pascoe Grenfell, enviado por dom Pedro 1º em 1823 para conseguir a adesão da população da província do norte às ordens do recém-criado Império. Foram registrados de cara cinco fuzilamentos em praça pública, e as ditas “desordens” em Belém ficaram tristemente famosas pela crueldade do encarceramento de 256 “subversivos” amontoados e trancados no porão do navio Palhaço. No calor equatorial, ainda lançaram cal sobre os prisioneiros.

Em dois dias, os corpos de 252 deles foram encontrados contorcidos com sinais de grande sofrimento. Quatro sobreviveram para contar o horror que testemunharam. O não conformismo da província do Maranhão e Grão-Pará, cujo litoral ia até o Rio Grande do Norte, continuou até 1840, como conta a historiadora. Um exemplo da “cordialidade” do proclamador da Independência, aliado às famílias tradicionais de Belém. Magda Ricci remonta essa sofrida história recorrendo a jornais da época, mas lamenta que muitos deles se perderam.

Houve também conjurações no Rio de Janeiro, na Bahia, em Pernambuco e em Minas Gerais. Não havia como conter as ideias da Revolução Francesa e do recém-formado Estados Unidos da América. Apavoravam os governantes portugueses, que agiam de forma violenta contra tudo o que se chamava federalismo, jacobinismo ou republicanismo. Com a decapitação de Luís 16 na França, em 1793, os monarcas europeus agiam com urgência para se livrar de todos aqueles que ameaçassem seus régios pescoços.

A maior resistência às intenções do novo monarca juntou constitucionalistas, republicanos ou simplesmente interesses regionais em Pernambuco, numa conjuração que explodiu no ano de 1817. As sementes libertárias estavam sendo germinadas havia tempos na região, desde quando os pernambucanos expulsaram os holandeses de suas terras.

“É certo que em Pernambuco mesmo, um punhado de indivíduos havia-se afoitado em 1710 a propor a adoção de um regime republicano à moda de Veneza, isto é, oligárquico; e é certo também que as chamadas ‘inconfidências’ (a mineira, a carioca e a baiana) haviam igualmente sonhado com repúblicas. Todas essas aspirações foram, porém, esmagadas no ovo de suas veleidades ideológicas. Só os revolucionários de Dezessete passaram à ação.”

Martírio

Quem marca a diferença é Evaldo Cabral de Mello na letra R, de Revolução Pernambucana. Evaldo chama a atenção para o riocentrismo da historiografia brasileira, ou seja, a história contada do ponto de vista do Rio de Janeiro. Federalistas, republicanos e até monarquistas se juntaram para se bater por uma Federação que unisse Pernambuco (que englobava o atual Alagoas), Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, inspirada na Federação dos treze estados norte-americanos que formaram os Estados Unidos da América.

O mártir símbolo em Pernambuco é Frei Caneca, executado em 1825, depois de sufocada a Confederação do Equador. Três carrascos se recusaram a cumprir sua sentença por enforcamento. Caneca acabou sendo fuzilado. Outros dez condenados foram executados e outros tantos morreram combatendo as tropas monarquistas, entre eles o jornalista João Soares Lisboa, editor do Correio do Rio de Janeiro. Condenado e preso pela monarquia, Lisboa continuou publicando seu jornal mesmo na prisão e desobedeceu à ordem de se exilar em Buenos Aires. Juntou-se aos confederados em Pernambuco, onde morreu lutando.

O título de mais reconhecido mártir republicano da nossa história fica, sem dúvida, com Joaquim José da Silva Xavier, o famoso Tiradentes. Sua memória, encoberta nos tempos de monarquia, foi recuperada e polida desde os primeiros anos da República. O maior especialista em Inconfidência Mineira, o inglês Kenneth Maxwell, esclarece que o alferes era um dos poucos que não integravam as elites mineiras organizadoras do movimento.

“Tiradentes não lia francês; era o propagandista do movimento, o ativista, o militar encarregado dos mais violentos atos previstos pelos conjurados. É preciso reconhecer que os mais sábios dos insurgentes mineiros eram magistrados, advogados e homens de grande trato nos negócios. Era esse o seu poder, mas também a sua fraqueza”, sustenta Maxwell, que reconstitui os encontros dos brasileiros com a literatura republicana e com o terceiro presidente dos Estados Unidos, Thomas Jefferson, na França.

As sedições fermentaram em períodos anteriores tanto em Pernambuco quanto em Minas Gerais, relata a historiadora Junia Ferreira Furtado: em 1710, em Olinda, e em 1720 e 1721, em Vila Rica. Em Olinda, depois de a Câmara Municipal ter sido tomada, o levante acabou em acordo. Mas em Vila Rica terminou com o julgamento e morte de Felipe dos Santos.

Outra demonstração de candura da monarquia, aliada aos poderosos locais, aconteceu em 9 de novembro de 1799. Os alfaiates Manuel Faustino e João de Deus do Nascimento e os soldados Lucas Dantas de Amorim e Luís Gonzaga das Virgens e Veiga foram enforcados e tiveram seus corpos esquartejados na praça da Piedade, em Salvador, como conta a  historiadora Patrícia Valim.

Na Bahia, onde a Independência é comemorada tardiamente, em 2 de julho, para lembrar a data de 1823 em que as tropas do imperador derrotaram as baianas, as sublevações voltariam a se repetir em 1832, com o Levante Federalista; 1835, com a Revolta dos Malês; e 1837, com a Sabinada, em que pelo menos 1.258 rebeldes e 594 legalistas morreram, segundo artigo de Keila Grinberg.

Na Conjuração do Rio de Janeiro, o alvo foram os homens de letras e ciências que se reuniam numa Sociedade Literária do Rio de Janeiro, como nos conta Gustavo Tuna. Nesses termos, o governante do momento se dirigia à magistratura para que instaurasse uma devassa na tal sociedade subversiva: o vice-rei argumenta ter “novos avisos” acerca da continuidade de conversas perigosas à fé católica e elogiosas ao “sistema da rebelião da nação francesa”.

Ódio à rebeldia

O padrão de selvageria demófoba se repetiria na República, agora de sinal trocado. O primeiro alvo foram os supostos monarquistas de Antônio Conselheiro, no Arraial de Canudos. Como a primeira Constituição republicana, de 1891, excluía do voto os analfabetos, mulheres e menores de 21 anos, e a maioria dos habitantes de Canudos estava numa dessas condições, era natural que eles se opusessem ao novo regime, alegando que o poder só poderia ser dado por Deus, como era o caso dos reis. No entanto, a autora do artigo, Marcela Telles, cita José Murilo de Carvalho ao afirmar que Canudos era como “uma República radicalmente distinta da República oficial”.

Esse ódio à rebeldia move os dirigentes da República oficial a deslocar quatro expedições do Exército para extirpar a rebeldia popular de Canudos. Em 1893, o confronto começaria com a polícia local, depois  dque Conselheiro e seus seguidores decidiram derrubar as placas que fixavam os impostos a serem pagos. Em 1896, cem praças foram mandados pelo governo republicano para acabar com o arraial. Foram derrotados. Em janeiro do ano seguinte, a expedição punitiva foi aumentada para 543 praças, armados com duas metralhadoras e dois canhões Krupp.  Foram derrotados também.

Em março daquele mesmo ano, os republicanos dobraram a aposta, com 1.281 praças comandados por um general. Perderam de novo. Dispostos a acabar com a humilhação, em junho, organizaram entre 6 mil e 10 mil praças para combater os sertanejos de Conselheiro. O general Artur Oscar de Andrade Guimarães pediu reforço de mais 5 mil homens, e os combates só terminaram em outubro. Um banho de sangue que não poupou nem velhos, mulheres ou crianças.

O major Febrônio de Brito, comandante da segunda expedição contra Canudos, testemunhou ao jornal O Paiz: “Nunca vimos, eu e os meus bravos camaradas, tanta ferocidade! Vinham morrer como panteras, dilacerando entranhas, agarrados às bocas das peças”. Era gente simples das mais diversas procedências que lutava pela terra como “um ponto de convergência para o exercício da liberdade e da igualdade”, como diz Marcela Telles em seu texto.

A República nasceu com um pecado original, como diz José Murilo de Carvalho em seu livro O pecado original da República (Bazar do Tempo); nasceu sem povo “e continua incompleta”. O governante que respeita as leis — o ideal da democracia — constantemente flertou na República brasileira com seu extremo oposto, a tirania — definido pelo mandatário que usurpa o poder e se sobrepõe às leis, como explicam as raízes dos conceitos desde a Grécia, segundo o filósofo Newton Bignotto, já na letra T. As monarquias constitucionais se aproximaram da República, lembra o autor, assim como as repúblicas tendem para a tirania, como ocorre em algumas sociedades atualmente, quando a democracia entra em colapso e perde seus referenciais.

Não queira o exigente leitor encontrar verbetes com as letras X e Q nesse Dicionário, que tem dezesseis letras como aglutinadoras dos verbetes sobre a República. Mas certamente encontrará, em textos curtos e densos, sabedoria concentrada sobre os diversos caminhos tomados pela República e pela democracia, desde os tempos do nascimento das palavras na Grécia, em Roma e Florença, passando por França, Inglaterra, Haiti, Estados Unidos, até chegar ao Brasil. Mais do que verbetes, os autores dos 51 textos críticos presentes na obra produzem clarões sobre conceitos e passagens históricas muito bem-vindas para todos que buscam encontrar caminhos melhores para nossa República.

Quem escreveu esse texto

Ricardo Lessa

Jornalista, é autor de Amazônia: as raízes da destruição (Atual/Saraiva).

Matéria publicada na edição impressa #29 dez.19/jan.20 em novembro de 2019.