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Panfleto centenário ganha reedição que resgata importante momento político paulistano

01jan2023 | Edição #65

Nos anos 20, os meandros da política da jovem República já tinham contornos de polarização entre partidos, ataques a políticos na imprensa e insinuações sobre comportamentos e ações dos governantes. Nesse contexto, um bacharel em direito e jornalista escreveu o panfleto Roupa suja. Publicada em agosto de 1923, a obra de Moacyr Piza resgata bastidores e fofocas da política — e teve influencia direta na morte do autor e de sua amante.

Piza era membro de uma família abastada que compunha a elite paulistana e amigo de nomes que fizeram sucesso na literatura, como Hilário Tácito e Alexandre Ribeiro Marcondes Machado (mais conhecido como Juó Bananére), cronistas que usavam a sátira para escrever sobre a cidade. Tido como um escritor pré-modernista, Piza criticava por meio do deboche.

Em Roupa suja, além de registrar afetos e desafetos, Piza tece críticas ao Partido Republicano Paulista (PRP), um dos expoentes da chamada República do Café com Leite que dominou a política paulistana e ao qual pertencia boa parte dos homens citados no panfleto. Nas páginas, também conhecemos lugares da cidade frequentados pelas elites, como a Villa Kyrial, espaço onde personagens ilustres se encontravam para divertimento; o Prado da Mooca, onde o autor teria visto sua amante com um figurão da política; e o Palácio dos Campos Elíseos, então sede do governo paulista e cena da festa em que Washington Luís se recusa a receber Piza.

O desaparecimento do legado literário de Piza é uma maneira de vingar uma mulher assassinada

O que o autor mais faz no panfleto é atacar diretamente membros do governo, como Júlio Prestes e o então presidente do estado e futuro presidente da República Washington Luís. Sempre tomado de tremenda indignação, Piza cita o ataque de Prestes,  que o chamou de “alma de esgoto”, mas Washington Luís é o principal alvo das suas frequentes críticas. O governador recebe a alcunha de “Washington Luís Pereira de Souza, maior, púbere, historiador, natural de Macaé, eleito pela Providência para a egrégia função de rodoviar a terra paulista” em todas as menções, muitas das quais se referem ao seu envolvimento com uma “criatura elegante, bela, quase divina e, mais que tudo, alegre”.

Embora não explicitamente mencionada no panfleto, a razão da raiva que permeia todo o livro tem nome: Nenê Romano, uma das prostitutas mais famosas da São Paulo da época — amante de Piza, que mantinha também uma relação com Washington Luís — e quem o autor matou com cinco tiros antes de cometer suicídio dois meses após a publicação do panfleto. Ainda que o nome de Nenê Romano não apareça em nenhuma parte do texto, a publicação provocou a ira dela, que não queria ser vista como “a mulher do Roupa suja”.

Livro de História

É por meio do posfácio, escrito com brilhantismo e delicadeza pelo historiador Boris Fausto, que compreendemos o relacionamento de Moacyr e de Nenê e encontramos uma explicação detalhada de como funcionava a política republicana no início do século 20, junto com uma pequena biografia dos homens do poder citados. Fausto revela que Washington Luís, que entrou para a História como um homem teimoso e duro, também era dado a festas e a mulheres alegres. A fama imputada a ele por Piza foi corroborada após a morte do escritor, quando boatos revelaram o envolvimento do então presidente com uma jovem marquesa italiana que o teria ferido com um tiro no Copacabana Palace.

Em suas últimas obras publicadas, Fausto narrou crimes de grande repercussão em São Paulo. Aqui, não se furta a contar a tragédia que uniu Romano e Piza — uma navalhada que a deixou com uma grande cicatriz e a razão pela qual conheceu o amante — nem o desfecho trágico de ambos, mortos pelo ciúme de Piza em 25 de outubro de 1923, dia do aniversário de Nenê Romano.

Piza acabou mais lembrado pela forma como morreu do que por sua produção literária. O crime ofuscou a obra, como aponta o historiador Elias Thomé Saliba na orelha do livro. O panfleto praticamente desapareceu há cem anos, junto com a morte de seu autor. A distância de um século entre o original e a reedição é marcante. Apesar de resgatar um momento literário e político importante para a cidade, Roupa suja também deve ser lido a partir da crítica à postura de seu autor. Vale lembrar que Moacyr Piza, tratado como vítima na maioria das publicações que noticiaram sua morte, é autor de um feminicídio. O desaparecimento do seu legado é de alguma forma uma maneira de vingar uma mulher assassinada por não querer mais estar ao lado de um homem que lavou sua roupa suja e a expôs publicamente.

Quem escreveu esse texto

Maíra Rosin

É historiadora e doutora em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo. Pesquisa as relações dos excluídos e marginalizados da História com a cidade.

Matéria publicada na edição impressa #65 em outubro de 2022.