As Cidades e As Coisas,

A casa que não encontra o lar

A origem dos apartamentos duplex e os modos de vida na cidade moderna

01abr2022 | Edição #56

Às mulheres sempre foi designada a casa. Nela, cabia à mulher organizar espaços, vivências e tudo o mais que a fazia funcionar. Quando as mulheres passaram a ocupar o espaço de formuladoras de projetos arquitetônicos, novamente foram colocadas nas casas, dessa vez como autoras do todo ou das partes que lhes cabiam, como cozinhas e espaços de serviço. Ambientes que toda mulher pretensamente conhecia tão bem e que precisavam se adaptar aos novos tempos.

O livro de Sabrina Studart Fontenele Costa, Modos de morar nos apartamentos duplex, traz à tona as diferentes perspectivas estabelecidas sobre as formas de viver nesses apartamentos. Sua história está intimamente ligada à história da mulher moderna, que precisava reorganizar seus espaços. Apenas pelo título, poderíamos pensar que ele trata apenas das moradias de elite, mas Costa nos mostra que há mais camadas nessa história.

Na modernidade tudo deveria ser revisitado para entrar no ritmo que a vida das cidades exigia. Mulheres de diversos estratos sociais agora frequentavam as ruas e participavam de outras configurações da vida doméstica. Os novos tempos demandavam a libertação das obrigações com o trabalho doméstico e, para isso, os modos de morar também precisaram ser repaginados. Não seria surpresa nem para a mulher moderna, e tampouco para nós hoje, que não é o espaço construído da casa que atribui ao trabalho doméstico a marca do feminino.

Diferentes aplicações

Cozinhas menores, áreas de serviço diminutas, a parte íntima da casa separada da área de convivência — nenhuma das contribuições que os apartamentos duplex trouxeram para a vida moderna bastou para que efetivamente a jornada da casa e a vida fora dela fossem de fato separadas do corpo e das obrigações das mulheres. A casa e seu projeto (com arquitetos homens) não equivaliam imediatamente ao lar.

Do nascimento dessa tipologia arquitetônica no conjunto soviético Narkomfin, cujo projeto buscava romper com os padrões burgueses, até a implantação dos duplex no Brasil, Costa nos leva a compreender como esses apartamentos não só fazem parte da mudança nos rumos das cidades e da vida doméstica, mas também como foram adaptados de maneiras distintas nos mais diversos lugares, servindo, no Brasil, de moradias de luxo providas de dependências de serviços que em nada lembravam o objetivo do conjunto soviético.

Há diversos projetos de destaque fora do país. Le Corbusier acreditava ter proposto uma verdadeira revolução ao pensar a arquitetura das casas como instrumento incondicional na transformação dos hábitos das pessoas. Seu famoso projeto para a Unidade de Habitação de Marselha se baseia na experiência soviética. O conjunto de Marselha não só impactou os arquitetos daquele momento como serviu de inspiração para que projetassem apartamentos do mesmo tipo em outros lugares, como a América Latina. No Brasil, o Rio de Janeiro, ainda capital, não tardou a receber um exemplar da tipologia. Ali merecem destaque a atuação da arquiteta Carmen Portinho em diversos projetos e o seu pioneirismo no movimento feminista no país, contribuindo para que as mulheres fossem poupadas da dupla jornada de trabalho a que sempre estiveram sujeitas.

Em São Paulo, os duplex também aconteceram: os edifícios Esther e Eiffel são parte do cenário urbano que estava se modernizando na cidade com as obras do Plano de Avenidas. A São Paulo moderna queria a mulher burguesa nas ruas, vendo as vitrines dos grandes magazines e vivenciando toda a sua emancipação da casa. A mulher agora não só poderia como deveria ser parte da cidade como nunca havia sido, saindo às ruas para realizar cursos e fazer atividades em vez de usá-las só como espaços de deslocamento. Mas uma parcela das mulheres da cidade já fazia isso, como as prostitutas, as trabalhadoras das fábricas, as donas de botequins ou aquelas que realizavam atividades ligadas ao que se esperava do universo feminino da classe trabalhadora, como as lavadeiras, as empregadas domésticas — em sua maioria pretas e pobres — e outras mulheres para quem a rua era também um espaço de sobrevivência.

Era um novo conceito de espaço urbano para um novo conceito de mulher, que, apesar de todas as mudanças, ainda seguia responsável pela manutenção da vida doméstica. No Brasil, a construção de edifícios com apartamentos duplex está diretamente ligada ao acúmulo de capital, tornando esses apartamentos exclusivos das classes mais altas. Além disso, receberam dependências específicas para empregadas domésticas.

Não é suficiente alterar as plantas e os projetos, pois o desenho da casa não altera as desigualdades de gênero

O livro traz entrevistas com moradores de diversos duplex modernistas que permanecem em uso nos dias de hoje. Os relatos nos permitem compreender tanto como tais espaços foram preservados (considerando que diversos estão sob proteção de tombamento) quanto as alterações feitas com o passar dos anos para que pudessem se adaptar aos novos modos de morar, com a descaracterização de seu interior. O discurso inicial sobre os modos de morar desapareceu com o tempo, deixando para trás as ideias de casa, mulher e habitante pretendidas no projeto original.

A cidade moderna dependia do modo como as mulheres atuavam nas casas e no espaço urbano. Apesar disso, poucas são as referências a elas nas obras de história urbana. Nesse ponto Costa acerta ao mostrar o que é indissociável: a mulher faz parte da vida urbana tal como a vida urbana faz parte do novo conceito de mulher.

A autora mostra que, no fundo, não é suficiente alterar plantas, projetos, modos de morar e ambientes, pois o desenho da casa não altera, num passe de mágica, as desigualdades e as hierarquias de gênero. A casa (o espaço construído) não é o reflexo imediato de um lar, das relações que se desenvolvem dentro das quatro paredes. Ainda que em novas configurações, o que se esperava das mulheres modernas seguia o mesmo que se esperou de suas mães e avós e, de certa forma, é o que se espera de nós ainda hoje.

Quem escreveu esse texto

Maíra Rosin

É historiadora e doutora em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo. Pesquisa as relações dos excluídos e marginalizados da História com a cidade.

Matéria publicada na edição impressa #56 em fevereiro de 2022.