Direito, História,

O Supremo e seus personagens

Baseado nos diários do ministro Aliomar Baleeiro, livro de Felipe Recondo mostra os bastidores do STF durante a ditadura militar

15nov2018 | Edição #10 abri.2018

A tarefa de separação entre direito e política foi o desafio central do liberalismo jurídico. Governos se sucedem, revoluções acontecem, constituições são substituídas, adversários disputam espaços de poder, leis mudam: como garantir que as relações humanas, os contratos e os pactos de convivência política sobrevivam a essas tormentas? O desafio foi respondido pelos juristas pela afirmação da autonomia do juízo de legalidade, diferente do juízo de eficiência (como o da economia), de fé (como o da religião), de correção (como da ética) ou de oportunidade (como o da política). 

As realidades concretas dos tribunais, contudo, abalam essa ideia simples. Juristas transitam entre o mundo das instituições jurídicas e políticas; as posições de cúpula de qualquer instituição burocrática, como o Poder Judiciário, são preenchidas a partir de critérios técnicos e políticos. Como defender a autonomia do direito quando os órgãos da justiça são tão politizados? Quando juristas, de quem esperamos posições técnicas e imparciais, são atores interessados nas disputas?

A produção acadêmica tem buscado entender como essa contradição se dá nas nossas instituições. Temas como a “judicialização da política”, a “politização da justiça” e o “ativismo judicial” revelam o esforço em identificar como o direito se mistura em assuntos da política e vice-versa. Essas pesquisas, contudo, ainda não dedicaram suficiente atenção às narrativas de vida, às trajetórias de certas personagens de nossa elite política e jurídica. 

Talvez nós, juristas, não tenhamos ainda nos atentando para o valor dessa linha de investigação. Esta obra dá boa amostra do quanto estamos perdendo por nossa negligência.

Com o rigor que o notabilizou como destacado jornalista especializado em cobertura do Judiciário, e do Supremo Tribunal Federal em particular, Felipe Recondo descortina os bastidores da trajetória da Aliomar Baleeiro no STF entre os anos mais críticos da ditadura militar de 1964-1985. Ao fazer isso, conta, por certa lente, a própria história do STF durante aquele período.

A opção de Recondo em contar essa história a partir da vida Baleeiro não poderia ter sido mais acertada. Baiano nascido em 1905, em família de classe média de Salvador, Baleeiro é o exemplar típico do integrante da elite política, jurídica e acadêmica do século 20: filho de funcionário público, cresceu sob os cuidados da primeira geração de escravos livres do Brasil. 

Estudou na Faculdade de Direito de Salvador com os filhos de famílias tradicionais, muitos dos quais seriam figuras de destaque na política e na cultura jurídica brasileira de sua geração: Hermes Lima e Adalício Nogueira, que foram ministros do STF no mesmo período de Baleeiro; Luiz Vianna Filho, chefe do gabinete Civil de Castello Branco; e o civilista Orlando Gomes, seu calouro na faculdade.

A trajetória política de Baleeiro confunde-se com a da UDN, que reunia jovens de mentalidade liberal

Durante os anos de estudos, Baleeiro tornou-se também jornalista, como era comum àquela altura: os cursos superiores de jornalismo no Brasil só surgiram na década de 1940 e os profissionais de imprensa até então eram em grande parte egressos das faculdades de direito, o bacharelado em humanidades por excelência naquele tempo. A profissão, claro, multiplicava-lhe as redes de influência. Ao mesmo tempo, passou a exercer a advocacia em Salvador.

Na década de 1930, Aliomar Baleeiro engrossou sua atuação político-partidária. Juntou-se ao PSD baiano e foi apadrinhado por Juraci Magalhães, um ex-tenente que apoiou Getulio Vargas na derrubada da oligarquia baiana ao fim da Primeira República mas voltou-se contra ele após o golpe do Estado Novo.

Com a queda de Vargas em 1945, Magalhães, Baleeiro e tantos outros opositores do ex-presidente, juntaram-se à União Democrática Nacional. A partir de então, a trajetória política de Baleeiro confunde-se com a da própria UDN, que inicialmente reunia desde jovens de mentalidade liberal, como ele próprio, pessoas de orientação mais socialista e até mesmo oligarcas da economia cafeeira destronados ao final de República Velha.

Como muitos homens públicos de seu tempo, percebeu que a disciplina jurídica da arrecadação e dos gastos públicos tinha potencial de transformação democrática do país: a forma ineficiente e pouco transparente de distribuição de recursos entre União, estados e municípios, somadas a práticas absolutamente frouxas de responsabilidade fiscal, levaram-no a tomar o direito tributário e financeiro como bandeiras de estudo e de política. 

Aliomar Baleeiro integrou comissões financeiras e respondeu por diversas iniciativas legislativas de seu tempo. Ganhou apelido de “Lei Aliomar Baleeiro” a Lei 2.135 de 1953, que garantia fontes permanentes e vinculadas de recursos públicos para obras essenciais — escolas, matadouros e casas de saúde, por exemplo — a pequenas localidades que não tinham pujança econômica necessária para efetuá-las. Baleeiro também teve papel central na aprovação do Código Tributário Nacional. Quando chegou ao STF, já era um dos mais emblemáticos parlamentares da UDN, além de respeitado jurista do direito público brasileiro.

Diários

A história que Recondo descreve, se não é de todo inédita, é aqui contada pela primeira vez com base na fonte que ele mais usa e maneja com maestria: os diários pessoais de Aliomar Baleeiro, hoje em guarda do Centro de Processamento e Documentação de História Moderna (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas (FGV). Ao todo, são dez cadernos brochura, recheados com fatos da vida pública brasileira que ele presenciou como parlamentar e ministro do STF. Suas anotações têm grande riqueza de detalhes.

É provável que os diários se destinassem a subsidiar um livro de memórias que Baleeiro planejava escrever. À época, era comum que homens públicos deixassem registros autobiográficos de suas vidas quando ensaiavam retirar-se da arena pública. Apenas no Supremo de seu tempo, houve três ministros que o fizeram: Adalício Nogueira, Hermes Lima e Oswaldo Trigueiro.

Baleeiro afirmou que um dia talvez escrevesse sobre tudo aquilo: ‘Quer assustar a todos nós?’, disse Castello

A fontes deste tipo, costuma-se objetar o cuidado que exigem em sua interpretação: elas retratam fatos da vida de um personagem que é, ele próprio, autor do relato que o descreve. Sujeitam-se assim a manipulações, conscientes ou inconscientes, seja na descrição que fazem de si próprios e de suas ações, seja nas de seus correligionários e desafetos. Essa objeção não proíbe o uso desta fonte; apenas recomenda que os relatos nela contidos sejam confrontados com outros. Esta é a razão pela qual Recondo valeu-se da melhor historiografia produzida sobre o período, assim como de entrevistas, colhidas com o rigor da técnica jornalística, feitas com outros personagens que frequentaram o Supremo juntamente com Aliomar.

Foi na manhã do último sábado de novembro de 1965, às 9h30, que Baleeiro se dirigiu ao Catete para ser convidado por Castello Branco para assumir uma das cinco novas vagas criadas pelo AI-2 no tribunal. Aliomar chegou preparado. O encontro não se resumiu ao convite: o presidente e seu indicado conversaram sobre temas variados, mas que no fundo refletiam as concepções que cada um deles tinha sobre o múnus público exigido por suas funções — de presidente, parlamentar e ministro do STF.

Ao final do encontro, Baleeiro, despedindo-se, contou a Castello que um dia talvez escrevesse sobre todos aqueles acontecimentos. Castello respondeu, em brincadeira ressabiada: “Quer assustar a todos nós?”. Graças ao notável trabalho de Recondo, agora saberemos o porquê.

Quem escreveu esse texto

Conrado Hübner Mendes

Professor de direito da USP, é autor de Constitutional Courts and Deliberative Democracy (Oxford).

Matéria publicada na edição impressa #10 abri.2018 em junho de 2018.