História,
Estrangeiro em todos os lugares
Biografia de Edward Said serve como guia para a erudição do pensador e mostra a sua luta pela criação do Estado Palestino
24set2021 | Edição #50Devo confessar minha ignorância. Naquela noite, em setembro de 1993, em que me deixei levar a um evento do American-Arab Anti-Discrimination Committee (Comitê de Antidiscriminação Árabe-Americano), eu não sabia muito bem quem era aquele Edward Said (1935-2003) que seria então homenageado. Levei muitos anos para remediar, parcialmente, aquela falta, mas soube naquela noite que já não esqueceria o homem.
Ao ser anunciado, aproximou-se do pódio, aceitou a placa comemorativa com uma cortesia que deixava escapar um quê de indiferença, colocou-a de lado e disse algo como: “Obrigado pela homenagem. Agora, vamos ao que interessa…”.
Ele se referia aos Acordos de Oslo, que acabavam de ser selados em Washington pelo presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, pelo primeiro-ministro israelense, Yitzhak Rabin, e pelo presidente da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), Yasser Arafat. Said estava furioso. As imagens do evento mostravam um presidente americano, soberano, forçando seus vassalos ao compromisso. Mas o que Said não podia perdoar mesmo era o abandono pela liderança palestina das legítimas demandas de um povo injustiçado; era a inversão das posições, já que em Oslo os palestinos tinham se comprometido com a obrigação de garantir a segurança de Israel, e não o contrário; era a permissão para que a narrativa israelense saísse vencedora e representasse a partir de então o que seria percebido como verdade.
A tragédia então consumada encontrava um elemento fundacional pelos símbolos e pelas narrativas que terminam por constituir a realidade e que, consequentemente, se transformam em fatos. Antes desatenta à importância de travar a batalha pelas mentes — ou desastrada e incompetente em sua execução —, a olp acabava de renunciar ao direito de disputar o lugar em que se faria ver a justiça.
Os Acordos de Oslo aparecem, na biografia que Timothy Brennan compôs de Said, Places of Mind: A Life of Edward Said (Lugares da mente: uma biografia de Edward Said), como o divisor de águas que de fato foram. O livro, que saiu neste ano pela editora norte-americana Farrar, Straus and Giroux e que ainda não tem tradução para o português, retrata com precisão o percurso de ativismo político do pensador americano-palestino, sua gradual inserção no movimento nacional da Palestina, sua proximidade com Arafat e outras lideranças, seu protagonismo e suas altas esperanças, e logo a inflexão e a decepção.
História de um homem
Esse retrato fiel de um percurso acidentado conta e ensina muito sobre a Questão Palestina, sobre a permanência de uma tragédia sempre renovada. Said, como tantos outros, terá falhado, pelo menos momentaneamente, na busca de soluções, mas ninguém poderá negar ao homem os seus créditos: ele tinha razão em insistir na importância da narrativa, sendo talvez o mais hábil e o mais inteligente dos defensores da Palestina no Ocidente, denunciando e lutando intensamente contra a cegueira de tantos em relação a uma causa cuja justiça deveria ser evidente.
Said insistia na importância da narrativa, sendo talvez o mais hábil dos defensores da Palestina no Ocidente
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Mas seria injusto contar Said apenas como um grande — e intelectualmente imponente — ativista. E o livro de Brennan não se permite essa injustiça. Afinal, a história do ativista e também aquela do intelectual são, antes de qualquer coisa, a história de um homem. Brennan foi aluno de Said e próximo dele, coletou documentos e testemunhos em quantidade impressionante e trabalhou com competência e sutileza os escritos de Said e de pessoas próximas a ele. Ao final, teceu esses vários elementos com grande maestria, nos contando a história de um homem que, essencialmente, estava sempre fora do lugar, ou melhor, que se pensava e se sentia fora do lugar, em algum tipo de exílio. Mesmo sendo esse um tema clássico, especialmente quando se é, de fato, em alguma medida, estrangeiro em todos os lugares, o “exílio” não deixa de ser a marca de um sofrimento. Ela se faz sentir em Said ao longo de toda a vida.
Essa marca, o deslocamento, ganha em interesse à medida que Said cresce e envelhece e potencializa a força de seu pensamento e sua obra. Talvez por isso a primeira parte da biografia, que retrata em detalhes a infância e a primeira adolescência vividas no seio de uma família abastada na Palestina e depois no Cairo, deixa a impressão de prolegômenos mais longos do que o necessário. Alguém poderá dizer que isso decorre da comparação possível com Fora do lugar, autobiografia em que Said lida com a própria juventude e sua identidade (publicada no Brasil pela Compahia das Letras, em 2004) e que acabou por se tornar seu livro de maior sucesso.
Uma biografia intelectual
Superadas essas páginas, Places of Mind ganha momentum e vai aos poucos se tornando um vertiginoso passeio pelo pensamento de Edward Said e pelo diálogo empreendido com seus pares na academia norte-americana, com filósofos, teóricos e críticos da literatura, críticos sociais, linguistas, filólogos e os polemistas da segunda metade do século 20, com direito a longos passeios por pensadores de outras eras.
O livro, que se apresenta como uma biografia intelectual, realmente nos oferece um panorama cuja exuberância é de tirar o fôlego. O conjunto comanda a humildade do leitor. Não se trata apenas de reconhecer em Said um potentado de erudição, de pensamento crítico e de capacidade de expressão e argumentação. Tudo isso é verdade e é retratado com perícia, o livro servindo como um precioso guia para a leitura e para a compreensão de sua obra. Mas há muito mais.
De um lugar privilegiado, o coração da academia norte-americana, Said empreendeu uma aventura investigadora por uma miríade de temas: filosofia, literatura, música, crítica social, linguística, imperialismo, colonialismo, cultura, Islã… O livro de Brennan nos guia por esse caminho ao mesmo tempo que nos revela o rigor teórico de Said, sua capacidade para a dúvida e para o questionamento, sua disposição para o debate e para o diálogo. Acompanhar o percurso e a obra de Said é simultaneamente um convite e uma provocação para conhecer, ou para redescobrir, apreciar e, logo, criticar pensadores como Vico e Ibn Khaldun, Sartre e Fanon, Foucault e Heidegger, Auerbach e Lukács, Adorno e Gramsci, entre tantos outros.
Cada livro de Edward Said — Orientalismo, A questão da Palestina, Cultura e imperialismo, Estilo tardio, Beginnings: Intention and Method (Inícios: intenção e método) e todos os demais — constitui um marco e nenhum deixou de levantar polêmicas. Entre todos, no entanto, talvez seja Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente (1978) a obra com que seu nome é mais imediatamente associado e também aquela que o tornou, aos olhos de muitos, o pai e fundador dos estudos pós-coloniais (ainda que ele recusasse o título, inclusive por pensar que o termo “pós” não cabia, uma vez que o colonialismo seguia — e segue — firme e forte).
Em Places of Mind, podemos acompanhar um pensador que duvidou, conheceu avanços e recuos em suas ideias e mudou de opinião sobre homens e obras e no qual outros viram contradição e mesmo obscuridade. Mas é possível também perceber uma obra que tratou de modo brilhante um conjunto de ideias absolutamente necessárias: a linguagem como performance, a relação entre a escrita e a ação, o papel da palavra, da imagem e da narrativa na constituição da realidade e a função da literatura no exercício do poder.
Em 1993, quando ouvi Said condenar os Acordos de Oslo, eram também essas as preocupações que ele nos convidava a compartilhar. O pensador já se sabia então doente com o câncer que viria a matá-lo dez anos depois. Eu não percebi isso naquela noite de setembro. Aquela imponência elegante e intimidadora estava lá apesar da enfermidade. Demorou um tempo para que eu formasse uma ideia razoável de quem, afinal, era aquele Edward Said. Como ele era deste mundo, certamente não era livre de defeitos. Ele se equivocou e cometeu erros, mas, diferentemente de muitos, nunca decaiu ou se corrompeu. Não se pode esperar mais de um homem. Além de me ensinar muito, Places of Mind não me fez questionar essa convicção.
Matéria publicada na edição impressa #50 em outubro de 2021.