Economia, História, Relações Internacionais,

A diplomacia na história (e vice-versa)

Ricupero mostra a imbricação entre a história econômica e política do Brasil com a estruturação de sua chancelaria

01out2017 | Edição #6 out.2017

Apesar do avanço da área das relações internacionais no Brasil, persiste um curioso vício de se tratar a política externa brasileira — e a diplomacia, em particular — como algo exógeno à vida política nacional. Nas obras de referência de história diplomática brasileira, a evolução política, socioeconômica e cultural em âmbito doméstico é tratada como mero pano de fundo, enquanto a chancelaria se encarrega de cuidar do que importa fora das fronteiras nacionais. Nos manuais de história do Brasil, as relações do país com o mundo são relegadas a parágrafos soltos no final de capítulos ou rebaixadas a notas de rodapé. 

Esse limbo não se restringe à academia ou às publicações especializadas. Nos grandes jornais, a política externa flutua entre os cadernos de política, economia ou internacional, sem merecer atenção especial de nenhum deles. Não há espaço reservado para se pensar o lugar do Brasil no mundo, ou o lugar do mundo no Brasil.

Nesse sentido, não é um acaso que a primeira tentativa explícita de encaixar quase cinco séculos de política externa brasileira na história do Brasil seja de Rubens Ricupero — figura que personifica como poucos a unidade entre as políticas nacional e externa. Ricupero, afinal, foi um dos maiores nomes de sua geração no Itamaraty, chefiou postos como Washington e a missão junto à ONU em Genebra, e comandou por nove anos a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD). Como diplomata de carreira desde 1958, trabalhou com os ministros San Tiago Dantas e Afonso Arinos nos anos 60, ajudou a distender a relação com a Argentina na virada dos anos 1970 e 80 e foi um dos pais fundadores da posição brasileira nas negociações do meio ambiente.

Mas ele foi também assessor de Tancredo Neves no ocaso da ditadura e atuou na Casa Civil de José Sarney. No governo Itamar Franco, virou ministro do Meio Ambiente e da Fazenda (jamais das Relações Exteriores). Como político, ajudou a implementar o Plano Real enquanto corria a campanha eleitoral de 1994 — e a incendiar o debate com o “escândalo da parabólica”, quando sua conversa sobre como camuflar dados negativos da economia acabou pega pelo sinal aberto de uma câmera de TV. Ricupero é esse personagem híbrido que os manuais de diplomacia brasileira não explicam. Com 80 anos, aposentado, ele decidiu escrever o seu, na forma de um catatau de quase oitocentas páginas, fruto de mais de três décadas de pesquisa. 

A diplomacia na construção do Brasil cobre, em um tiro só, do século 18 até o governo de Dilma Rousseff. É um ambicioso, longo e detalhado sobrevoo, que está fadado a ser obra de referência na área das relações exteriores do Brasil.

Suas primeiras trezentas páginas examinam os “temas clássicos” da história diplomática brasileira até o consulado do Barão do Rio Branco. Por exemplo, como a negociação pela Independência pôs em choque a razão de Estado, representada por José Bonifácio, e os interesses dinásticos de dom Pedro. Ou a relação entre o desequilíbrio de poder na região do Prata, que atingiu seu paroxismo com a Guerra do Paraguai, e o declínio do Império, quebrado financeiramente pela guerra e moralmente pela escravidão. 

As demais quinhentas páginas vão da Revolução de 30 até as pedaladas fiscais de Dilma. Ricupero discute como a política externa independente de Jânio Quadros — que recusava alinhamentos automáticos, enfatizava o respeito à autodeterminação e à pluralidade do sistema internacional e condicionava a diplomacia ao desenvolvimento autônomo brasileiro — virou uma espécie de paradigma definidor, pela afirmação ou negação, da identidade diplomática dos governos que a sucederam até os dias de hoje. 

No último trecho, a partir da redemocratização, o autor assume o papel de spectateur engagé: uma análise crítica de alguém que tomou parte dos eventos. Quando se chega aos anos Lula, o tom é de oposição — à centralidade de “interesses ideológico-partidários”, à percepção exagerada da influência internacional do Brasil, à política sul-americana feita com base em afinidades entre governos compañeros e à postura excessivamente defensiva nas áreas comercial e ambiental. São críticas acertadas, feitas de maneira ponderada e sem a histeria que marca o debate atual, ainda que Ricupero coloque em segundo plano acertos importantes, como os BRICS ou a missão de paz no Haiti. Melancolicamente, o livro termina com a súbita queda da diplomacia a um papel marginal no governo Dilma, em um contexto de turbulência econômica e política.

Nem no Burundi

O projeto do livro nasceu quando Ricupero lecionava história diplomática brasileira no Instituto Rio Branco, e se via obrigado a catar fragmentos de livros distintos para construir uma só narrativa da história e da diplomacia do Brasil. A versão final da obra preserva o didatismo e, sobretudo, a linguagem direta e fluida.

Ainda que de maneira implícita, o livro discute os fatores que fazem a política externa continuar a ser vista como insular e secundária. A parte inicial mostra como o Brasil é um país continental sui generis: o grosso de sua formação territorial antecedeu a Independência (diferentemente dos EUA) e, desde a Guerra do Paraguai, vive em paz com seus vizinhos (ao contrário de Rússia, China e Índia). Há tanto tempo gigante e pacífico, o Brasil se voltou para dentro.

Essas variáveis estruturais se somaram a uma curiosa evolução institucional, que Ricupero discute ao analisar o legado do Barão do Rio Branco para além das grandes vitórias em litígios fronteiriços. A chancelaria teve um desenvolvimento precoce dentro da burocracia do Estado; o Itamaraty de hoje foi idealizado pelo Barão — do ordenamento interno à seleção e formação de seus quadros. Claro, o escopo e o tamanho do Itamaraty dentro do governo cresceram, enquanto a origem de seus funcionários se diversificou de uma pequena elite de famílias abastadas (ainda que muito menos do que deveria). Mas sua estrutura elementar manteve-se. Com a figura do diplomata profissional e seu éthos derivado do prestígio de Rio Branco, a chancelaria pode se resguardar muito mais do vaivém da política partidária e das disputas eleitorais do Brasil moderno. Como sentenciou Ulysses Guimarães: “O Itamaraty não dá voto nem no Burundi”.

O trecho mais rico do livro começa com os anos Jânio Quadros, quando a análise histórica ganha pinceladas das memórias de Ricupero. Por exemplo, foi ele, como jovem diplomata, que ciceroneou Robert Kennedy em Brasília quando o emissário americano deu uma espécie de ultimato a João Goulart para que “tomasse uma decisão” sobre a posição do Brasil frente ao mundo socialista. Hoje se sabe, com base nos arquivos americanos, que Washington já havia tomado a sua própria decisão frente a Jango, incluindo com planos de apoiar militarmente uma rebelião militar — os quais não precisaram ser colocados em ação. 

O livro discute o que faz a política externa do Brasil continuar a ser vista como insular e secundária

Ricupero explora detalhes pouco conhecidos da política sul-americana do final do regime militar, como detalhes da política para vizinhos amazônicos nos governos Geisel e Figueiredo, quando era o responsável por esse dossiê no Itamaraty. O livro também descreve um Itamar Franco contraditório, por vezes irresoluto e zeloso por conter a influência do então candidato Fernando Henrique Cardoso na fase de implementação do Real — imagem que contradiz versões da época. Uma das passagens mais saborosas do livro é a conversa de Itamar com o autor, quando o convidou para ser ministro, apesar de Ricupero tê-lo alertado de que não se considerava preparado para a empreitada.

O livro combina um saber enciclopédico da história da política externa brasileira com a perspectiva de insider do autor. Sua base é uma minuciosa revisão da bibliografia; poucos trechos se apoiam em fontes primárias e não há grandes revelações. Ricupero tampouco se propõe a formular uma hipótese que sirva de fio condutor à obra, embora perpasse diversos debates historiográficos centrais — das causas do fim tardio da escravidão ao filofascismo na Era Vargas.

Há, inevitavelmente, lacunas importantes — por exemplo, o envolvimento do Itamaraty na repressão a “subversivos” brasileiros no exílio, ou o apoio do Brasil à destruição da democracia em países como Bolívia, Uruguai e Chile durante o regime militar, são mencionados en passant apenas. Mas elas têm mais a ver com a falta de pesquisas aprofundadas sobre esses temas do que com uma opção deliberada do autor por omiti-las.

O valor do livro está em seu poder de síntese, na sua abrangência e na capacidade em atar as políticas nacional e exterior ao longo de quatro séculos. Uma contribuição e tanto. 

Quem escreveu esse texto

Roberto Simon

É analista de risco político para a América Latina.

Matéria publicada na edição impressa #6 out.2017 em junho de 2018.