Economia, Relações Internacionais,
Sobre democracia e moeda
Coassinada pelo economista francês, proposta para democratizar Zona do Euro não sugere dispositivos de proteção contra novas crises
13nov2018 | Edição #7 nov.2017Por que razão terá uma editora brasileira decidido traduzir e publicar Por uma Europa democrática? Trata-se de um pequeno livro no qual seus autores mostram que a Zona do Euro, dentro da União Europeia, é governada de maneira informal e pouco democrática, e apresentam um projeto de Tratado de Democratização da Zona do Euro, através do qual seria instituída uma Assembleia Parlamentar da Zona do Euro.
O tema é importante para os europeus, particularmente para os habitantes dos países da região em questão. Mas interessa pouco aos brasileiros. Teria sido porque, entre seus autores, figura Thomas Piketty, que se tornou um economista fundamental deste início de século com seu extraordinário livro, O capital no século 21, de 2013? Talvez, mas no livro que estou resenhando não há nada daquilo que tornou Piketty merecidamente famoso: uma monumental pesquisa sobre a desigualdade econômica no mundo capitalista e uma capacidade de análise franca e aguda dos grandes problemas de que tratou em sua obra anterior.
Os autores dedicam o primeiro capítulo a mostrar o caráter informal e pouco democrático da forma de governar a Zona do Euro. A instituição central desse governo é o Eurogrupo, formado pelos ministros das Finanças dos países membros. É uma instituição informal, que funciona à margem dos tratados europeus, e, por isso, não precisa prestar contas ao Parlamento Europeu.
O poder fica nas mãos da burocracia pública — principalmente a alemã e a francesa. E se divide entre o Eurogrupo, a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional — os três últimos constituindo a Troika. Além do Eurogrupo, a Zona do Euro conta com alguns instrumentos que surgiram principalmente em função da grande crise do euro (2010-16): o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MES) é um fundo criado em 2012 para socorrer os estados membros inadimplentes; tem um capital de 702 bilhões de euros, mas, quando foi criado, todos sabiam que não tinha capacidade de evitar a quebra de um país membro; o Tratado de Estabilidade, Cooperação e Governança, também de 2012, que estabeleceu o compromisso dos estados membros com uma “regra de ouro” de disciplina ou equilíbrio fiscal; o Six-Pack e o Two-Pack, pacotes legislativos adotados entre 2011 e 2013 para instrumentar a supervisão orçamentária dos países; e o Semestre Europeu, ciclo de coordenação de políticas econômicas e fiscais que ocorre no primeiro semestre visando estabelecer as diretrizes orçamentárias dos países e, portanto, o equilíbrio orçamentário do ano seguinte.
Forças democráticas
A Zona do Euro é um quase-Estado, mas, como argumentam nossos autores, não é governada de maneira minimamente democrática. Para isso, eles propõem que se crie a Assembleia Parlamentar da Zona do Euro, que “visa consolidar a presença de forças democráticas europeias no centro da governança da Zona do Euro”. Para isso, devem ser atribuídos a ela “poderes genuínos”. Os quais, porém, não entrarão em conflito com os poderes do Parlamento Europeu. A Assembleia deverá ser formada por cem ou quatrocentos membros, distribuídos de acordo com a população de cada país.
Surge, então, uma pergunta que os autores classificam de “incômoda”. O que aconteceria se um ou alguns dos parceiros — a Alemanha, por exemplo — não concordasse em participar? “O provável resultado disso seria um clima de desconfiança e irritação que terminaria se impondo na Zona do Euro.” Os autores, porém, advertem que não acreditam nessa possibilidade, extremamente pessimista. O livro termina com o projeto do Tratado, constituído por dezessete artigos, que os autores comentam um a um. E com um glossário muito útil.
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Talvez a criação de uma Assembleia Parlamentar da Zona do Euro seja uma medida aconselhável. Mas não é a Zona do Euro que padece de pouca democracia; é toda a União Europeia. Eu já fui um grande defensor da União Europeia, mas hoje sou também um crítico. Seu objetivo básico, evitar novas guerras entre seus grandes países, continua válido, mas é impressionante como os seus dirigentes têm ignorado o povo em suas decisões. O caso mais grave foi o dos dois plebiscitos, em 2005, nos quais franceses e logo em seguida holandeses rejeitaram uma constituição europeia. A constituição não foi colocada em vigor, mas os seus dispositivos mais importantes foram incluídos em tratados e passaram a vigorar. Parece-me bom, portanto, institucionalizar e democratizar a Zona do Euro.
Mas a Zona do Euro acaba de passar por uma grande crise econômica. Embora muitos críticos defendessem a dissolução acordada da moeda, os países-membros decidiram mantê-lo. Não há no livro, porém, uma palavra sequer sobre como evitar nova crise. Essa crise, que teve um enorme custo em termos de emprego e de renda, começou em 2010, com a quebra da Grécia, e só pode ser considerada superada a partir de 2017.
Foi superada, mas nada foi feito para enfrentar a causa fundamental, que não foram deficits fiscais, os quais, à exceção da Grécia, estavam bem controlados pelos próprios governos, pela Comissão Europeia, pelo BCE e pelo FMI. No início da crise, o desequilíbrio estava nas empresas e nas famílias, fortemente endividadas — endividamento que se refletia em grandes deficits em conta-corrente. Que não eram e continuam a não ser controlados devidamente, porque a ortodoxia liberal dominante, contra toda a evidência, parte do pressuposto de que o setor privado está sempre equilibrado, sendo os problemas, portanto, sempre dos governos.
Não conheço os três outros autores, mas Piketty é economista. Por que não apresentou também uma proposta de controle dos deficits em conta-corrente? Para fazer a proposta de uma Assembleia Parlamentar, seu nome não era necessário. Convidado a participar, deveria ter feito também uma proposta econômica. Deveria definir brevemente o problema econômico e mostrar como a reforma política poderia ajudar a evitar novas crises econômicas na Zona do Euro.
As famílias dos países do norte da Europa aceitam mais naturalmente limitações a seu consumo do que as dos países do sul. Assim, em 2003, os alemães aceitaram a limitação do aumento dos seus salários em troca de garantia de emprego. Acordo que não foi realizado nos países do sul. Por isso eles perderam competitividade, incorreram em deficits em conta-corrente e se endividaram. Não foi a primeira vez que isso ocorreu.
Antes da criação do euro, os desequilíbrios em conta-corrente causados por essa diferença de comportamentos eram resolvidos com relativa facilidade pela depreciação das moedas nacionais. Como o euro inviabilizou a depreciação, a alternativa foi a “depreciação interna” — uma grande e demorada recessão que causou desemprego e reduziu salários. Evitar a repetição de crises como a de 2010-16 é o problema fundamental da Zona do Euro. Piketty fica devendo.
Matéria publicada na edição impressa #7 nov.2017 em junho de 2018.
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