Flip,
Homicidas e voadoras
Narrativas de duas autoras latino-americanas tematizam a violência e as tortuosas contradições da região
11out2023 | Edição #75Vivemos uma realidade que tem a violência como traço distintivo, uma violência que faz parte tanto de nossas histórias fundadoras quanto do ambiente cotidiano da existência. Esse pode ser um dos corolários da leitura conjunta de dois livros latino-americanos recentes, As homicidas, da chilena Alia Trabucco Zerán, e Voladoras, da equatoriana Mónica Ojeda (ambos traduzidos por Silvia Massimini Felix), que compartilham a curiosidade pelas tortuosas contradições da região.
A primeira usa os arquivos, os jornais, os documentos e um estilo próximo à reportagem para resgatar quatro homicidas no Chile do século 20, para propor uma reflexão sobre os recalques sociais e as artimanhas escusas da Justiça; a segunda usa uma prosa poética, carregada de metáforas e elipses, para singularizar uma série de personagens envolvidas em crimes, aparições mágicas, fetichismos e desejos latentes (uma delas tem “uma curiosidade infinita pelas mutilações”).
As duas escritoras não são iniciantes e contam com um percurso de publicação consistente: autora de três romances, Ojeda, uma das convidadas da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) deste ano, já teve traduzido no Brasil o terceiro deles, Mandíbula, em 2022, pela Autêntica; Trabucco Zerán, por sua vez, venceu o British Academy Booker Prize de 2022 com As homicidas, além de ter dois romances, La resta (que venceu o prêmio do Conselho de Artes do Chile, em 2014, publicado no Brasil como A subtração, pela editora Moinhos) e Limpia.
Ojeda foi incluída pela revista Granta, em 2021, na lista de 25 melhores escritoras e escritores jovens em língua espanhola, e sua obra tem sido incorporada pela crítica ao movimento do “novo gótico latino-americano” (ou mesmo o “gótico andino”), alinhada a autoras como Mariana Enríquez e María Fernanda Ampuero. Trabucco Zerán, com sua mescla de narrativa e investigação, mantendo um olhar simultâneo às energias do passado e aos dilemas da contemporaneidade, segue na linha de outras intelectuais latino-americanas com produções nesse estilo, como Diamela Eltit, Josefina Ludmer e Cristina Rivera Garza.
Em Voladoras, Ojeda apresenta oito contos, alguns com títulos sugestivos como “Sangue coagulado”, “Cabeça voadora” e “O mundo de cima e o mundo de baixo”, que já de saída situam o leitor em seu universo peculiar, ao mesmo tempo violento e enigmático. “Gosto de sangue”, diz a voz narradora de “Sangue coagulado”, e continua: “Gosto de que as unhas fiquem sujas por baixo, que pareçam que vão sair. Que minhas impressões digitais sejam notadas. Que entardeça e as nuvens se enferrujem”. Imagens e objetos cotidianos são mobilizados por um olhar carregado de fantasia: “Luciana tinha medo do escuro sem teto, então media a altura das nossas paredes com suas tranças”, escreve a autora no conto “Terremoto”.
Nas histórias de Ojeda, as pessoas são frequentemente acometidas por impulsos irracionais, por desejos atípicos, que desviam do convencional: “Quanta força é necessária para arrancar a cabeça de uma pessoa?, ela se perguntava às vezes, com vergonha, olhando para si mesma no espelho. Quanto desejo? Quanto ódio?”. Nos contos de Voladoras, a dimensão material do corpo e das ações dos indivíduos é sempre atravessada pela textura inquietante dos sonhos e dos delírios; essa textura, por sua vez, carrega em seu relevo uma série de signos imediatamente reconhecíveis por qualquer morador da América Latina das últimas décadas: a violência urbana, o machismo, as desigualdades sociais, a corrupção política, a fragilidade dos laços sociais e assim por diante. O acúmulo reiterado desses fatores gera, necessariamente, uma resposta contundente de certas personagens, como é o caso de uma das vozes que organizam o conto “Soroche”:
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Também senti ódio pela beleza das nuvens e pelo verde da montanha, das flores e da cidade lá embaixo, e soube que meu papel naquela paisagem era mijar até a morte. Entendeu? Porque a beleza é minha inimiga. E eu chorei, mas de ódio extremo.
Para além do crime
Trabucco Zerán dá conta de quatro “homicidas” cujas histórias se entrelaçam: Corina Rojas, que participa do esfaqueamento do marido em 1916; Rosa Faúndez, que dá cabo do seu namorado em 1923, esquartejando o corpo e o espalhando pela cidade; María Carolina Geel, que esvazia um revólver no corpo de um pretendente em pleno salão de um restaurante; e, por fim, María Teresa Alfaro, que coloca estricnina no leite da família para quem trabalha como doméstica, matando, ao longo do tempo, três crianças e a mãe da sua patroa.
O objetivo da autora é “contemplar essas quatro mulheres além de seu perfil criminal”, como escreve no prólogo. Elas se situam “em um interstício”, entre “o mito e a realidade”, entre “o passado e o presente”, entre “o direito e a literatura”. Para dar conta dessas personagens, Trabucco Zerán trabalha com as representações discursivas da mulher criminosa. Ou seja, escreve ela, “minhas histórias, reflexões, perguntas e conjecturas são lançadas sempre sobre o que a imprensa disse, o que juízes e médicos afirmaram, o que vários artistas propuseram ou interpretaram”.
Ojeda e Trabucco Zerán inventam montagens possíveis de elementos dispersos ao nosso redor
É a partir, portanto, dos resíduos textuais deixados por essas vidas que Trabucco Zerán constrói seu projeto: “Meus materiais são os textos, os indícios, os discursos. E minhas ferramentas são a leitura, o pensamento, a escrita”. Não é por acaso que a autora revele no livro que tudo começou com o caso de María Carolina Geel. Trata-se, sem dúvida, do melhor capítulo de As homicidas, em que as “ferramentas” são utilizadas com maestria, o centro irradiador de sua energia e inventividade. Alguns recessos do projeto, mais distantes desse centro, às vezes soam um pouco arrastados, mesmo repetitivos (como a insistência no “caráter de mãe” de Corinas Rojas, por exemplo). Outro momento digno de nota, que recompensa uma leitura atenta, é a abertura “ensaística” do quarto e último capítulo, dedicado a María Teresa Alfaro.
O que fica evidente é a plasticidade infinita da ficção de ambos os livros, entendida como a capacidade da linguagem de dar conta do mundo. Não são apenas relatórios sobre a violência de ontem e de hoje — os telejornais mais estúpidos e vociferantes dão conta disso, todos os dias. Ojeda, pelo viés onírico-poético, e Trabucco Zerán, pelo arquivístico-documental, inventam montagens possíveis de elementos dispersos ao nosso redor, pedaços de histórias que, se não fosse seu trabalho ficcional, permaneceriam esquecidos e ilegíveis. Por conta desse trabalho, certas vidas e experiências ganham aderência à realidade, transformando-a irremediavelmente.
Matéria publicada na edição impressa #75 em outubro de 2023.
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