Macacheira/Acervo da família

Flip, Poesia,

No mínimo, o máximo

Concisa e cheia de humor, obra poética de Leminski se nutre de saber, mas também de muita vivência — e nela vemos sua manha, até o fim

01jul2025 | Edição #95

Hesitei em aceitar o convite da Quatro Cinco Um para escrever este texto. Será que eu teria algo a acrescentar a meu artigo “O samurai malandro”, publicado 42 anos atrás? Não seria hora de abrir espaço para os mais novos, que agora o descobrem e amam? Peguei, então, meu exemplar de Toda poesia e passei algumas horas relendo. Em 1983, tratei apenas do recém-lançado Caprichos & relaxos. Posteriormente, vieram à luz mais livros, com muitos outros poemas. Se algo mudou, em minha reação de leitora, é que minha admiração por Leminski é maior agora. Percebi que ainda havia muito a ser dito sobre sua poesia.

Quais são as principais qualidades dessa poesia que tem agora milhares de leitores? A primeira é sua concisão, a capacidade de dizer mais com menos. Num texto em prosa, a concisão significa transmitir muita informação usando poucas palavras. A poesia é concisa por natureza. Resultado de um insight de seu autor, o bom poema não tem nenhuma palavra supérflua, e atinge o leitor de modo imediato, provocando nele surpresa, satisfação sensorial e cognitiva, prazer estético. Leminski aprendeu a concisão com os haicais japoneses e com os epigramas e aforismos da cultura ocidental, que ele conhecia e citava. 

Um poema breve pode ser repleto de significados. Entre os seus, talvez o mais sucinto seja este, de Quarenta clics em Curitiba

isso?
aqui?
já?
assim? 

É pouco? Na linha do tempo que vai do nascimento à morte, quantos eventos surpreendentes cabem na palavra “isso”?

Os poemas de Leminski têm as qualidades que Italo Calvino preconizava em Seis propostas para o próximo milênio (Companhia das Letras, 1988): leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade. Essas seriam, segundo o escritor, as características literárias apropriadas para um mundo que está “cada vez mais condenado ao peso” e, ao mesmo tempo, “repousa sobre entidades sutilíssimas — tais as mensagens do A.D.N, os impulsos neurônicos, os neutrinos, […] os bits eletrônicos”. Sobre a exatidão, Calvino dizia: “uma linguagem que seja a mais precisa possível como léxico e em sua capacidade de traduzir as nuanças do pensamento e da imaginação”. Em La vie en close (1991),
Leminski diz:

Condenado a ser exato
Por um tempo escasso,
Um tempo sem tempo
Como se fosse o espaço,
exato me surpreendo [

Sua exatidão não é mera sacada, espontânea e eventual. Por detrás dela há muita reflexão e conhecimento.

Marginal pelo modo de vida, Leminski nunca foi um ‘poeta marginal’, no sentido usual da expressão

Além do domínio do latim e de outras línguas, Leminski tinha uma grande bagagem de leituras literárias e filosóficas, que ecoam em sua poesia e em seus ensaios, igualmente breves e argutos, publicados sob o título delicioso de Anseios crípticos. Representante da “contracultura”? Contra qual cultura? Da cultura política e comportamental de seu tempo, sim, mas não da alta cultura. E suas leituras resultaram em autoexigência e autocrítica: “Tudo o que eu faço / alguém em mim que eu desprezo / sempre acha o máximo”, diz em “Poesia: 1970”. Marginal pelo modo de vida, ele nunca foi um “poeta marginal”, no sentido usual da expressão. Sua marginalidade é a da página quase branca, com silêncios eloquentes. Em “ais ou menos”: 

Marginal é quem escreve à margem,
deixando branca a página
para que a paisagem passe
e deixe tudo claro à sua passagem []

Chiste estético

Vários poemas de Leminski nos fazem sorrir, ou mesmo rir. Freud observou que o chiste é estético e social. Jogar com palavras é uma arte, e oferecer esse prazer a outros é uma generosidade. Para conferir humor a seus poemas, ele usa vários recursos de linguagem: duplo sentido (“essa estrada vai longe / mas se for / vai fazer muita falta”), trocadilho (“nadei nadei e não dei em nada”), palavra-valise (“PERHAPPINESS”). 

Recorre, também, a um vasto repertório de expressões idiomáticas: “tanto fez como tanto faz”; “nem vem que não tem”; “choveu / na carta que você mandou / quem mandou?”. E essa é uma das grandes dificuldades enfrentadas por seus tradutores. Às vezes, uma única letra acrescentada à palavra reforça seu significado; como em: “haja hoje p/ tanto hontem”. Na ortografia antiga, a palavra “hontem” fica mais longa e o passado, mais velho. 

Em vida, foi admirado por alguns e fez discípulos fiéis, enquanto para outros era um mero piadista

Sua obra poética se nutre de saber, mas também de muita vivência. Quatro anos depois de Caprichos & relaxos, Distraídos venceremos (1987) contém poemas mais longos e abarca uma temática menos lúdica, referente a experiências psíquicas: amor, morte, mistério, espiritualidade, passagem do tempo, saudade. A palavra “dor” torna-se, desde então, recorrente. Esses temas românticos, que se prestariam ao sentimentalismo, são por ele tratados de maneira contida: “uma poesia ártica”, “uma prática pálida”, “uma lira nula” (iceberg). 

Sabemos que essa temática provém de ocorrências funestas em sua vida: a morte do filho Miguel Ângelo aos dez anos de idade, o suicídio do irmão Pedro, os desentendimentos com a amada Alice. Os poemas dessa fase abordam o sofrimento não como expressão pessoal, mas de maneira distanciada e ocasionalmente irônica:

um homem com sua dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegando atrasado
andasse mais adiante []

Na introdução à primeira edição de Distraídos venceremos, ele dizia: “acredito ter atingido um horizonte longamente almejado: a abolição (não da realidade, evidentemente) da referência, através da rarefação”. O despojamento de referências individuais favorece a empatia do leitor, que pode reconhecer, nesses poemas, suas próprias dores, sublimadas pela formulação exata. Apesar de remeter a uma “zona escura” de sua mente, Distraídos venceremos exibe ainda o humor do poeta: 

arte do chá
ainda ontem
convidei um amigo
para ficar em silêncio
comigo
ele veio
meio a esmo
praticamente não disse nada
e ficou por isso mesmo

A cerimônia do chá é uma prática japonesa tradicional, fundamentada no budismo, uma forma de meditação e um caminho para a iluminação (satori).

Sua execução implica dezenas de utensílios e centenas de gestos. É um ritual e uma arte. Um “encontro para o chá” (chakai) dura em média quatro horas, mas pode prolongar-se indefinidamente. O encontro proposto pelo poeta, na primeira estrofe, é simples e sóbrio, como convém ao ritual: apenas um silêncio compartilhado. Entretanto, na segunda estrofe, desponta a malandrice brasileira do poeta. O amigo veio “meio a esmo” e o encontro ficou “por isso mesmo”. A rima rara e a expressão idiomática final têm a graça da derrisão. Do “praticamente nada”, Leminski fez um poema, que é uma forma particular da iluminação.

Manhas e destrezas

La vie en close e O ex-estranho (1996) pertencem à última fase de sua existência, marcada pela decadência física e o lento suicídio pelo alcoolismo. Apesar do registro discreto de seu estado corporal e psicológico, os poemas finais mostram que o poeta não perdeu nada de suas “manhas e destrezas”, qualidades que ele atribuiu a Bashô, em sua biografia do poeta:

leite, leitura,
letras, literatura,
tudo o que passa,
tudo o que dura
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
tudo, tudo, tudo,
não passa da caricatura
de você, minha amargura
de ver que viver não tem cura

Na apresentação de O ex-estranho ele faz uma lúcida autoanálise: 

Este livro de poemas, que ia se chamar O ex-estranho, expressa, na maior parte de seus poemas, uma vivência de despaisamento, o desconforto do not belonging, o mal-estar do fora de foco, os mais modernos dos sentimentos. Nisso, cifra-se, talvez, sua única modernidade. 

O “espaçotempo ávido” arrebatou Leminski antes de seu pleno reconhecimento. Em vida, ele foi admirado por alguns e fez discípulos fiéis, enquanto para outros era um mero piadista. Agora, muitos reconhecem que ele “ganhou aquela briga / entre o quanto e o tanto faz” (no instante do entanto). 

Em “ais ou menos”, ele refletiu sobre o êxito com ironia:

A glória sucede
O que sucede à água:
Por mais água que beba,
qual lhe sacia a sede?
Diverso o sucesso,
basta-lhe um verso
para essa desgraça
que se chama dar certo.

Leminski deu certo no futuro. Acaso? “Acaso é este encontro / entre o tempo e o espaço / mais do que um sonho que eu conto / ou mais um poema que eu faço?”. Em tempos de comunicações eletrônicas, que ele não conheceu, mas intuiu, seus poemas cintilam em centenas de redes turvas, fornecendo-lhes momentos excepcionais de qualidade.

Quem escreveu esse texto

Leyla Perrone-Moisés

É autora de Mutações da literatura no século 21 (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #95 em julho de 2025. Com o título “No mínimo, o máximo”

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