Filosofia,

O espírito e a mão

Saberes abstratos e práticos se combinam na “Enciclopédia”, formidável empreendimento editorial do século 18 que ganha seleta em 6 volumes no Brasil

13nov2018 | Edição #8 dez.17-fev.18

Os 28 volumes in-fólio da Enciclopédia, publicados a partir de 1751 por Diderot e d’Alembert, formam uma massa impressionante. A empreitada reuniu, ao longo de vinte anos, mais de 150 colaboradores para oferecer um quadro atualizado dos conhecimentos da época. Mas a ambição totalizadora esbarrou nas realidades políticas, econômicas e epistemológicas que causaram interrupções e bifurcações.

O ponto de partida foi o projeto de uma tradução francesa da obra Cyclopaedia or An Universal Dictionary of Arts and Sciences, dois volumes publicados em Londres, em 1728, por Ephraim Chambers. Em 1745, o livreiro parisiense Le Breton (livreiro no sentido de editor comercial) obtém um privilégio real para uma Encyclopédie ou dictionnaire universel des arts et des sciences. Mas não é fácil compor uma equipe de tradutores. Le Breton acaba se dirigindo a Diderot e d’Alembert, ao mesmo tempo que se associa a colegas livreiros e constrói uma sólida base financeira. 

D’Alembert é um matemático já famoso, e Diderot, um homem de letras que acaba de colaborar na tradução do Dictionnaire universel de médecine, do inglês Robert James. É também um “livre-pensador” vigiado pela polícia por seus textos clandestinos: As joias indiscretas, romance libertino que se arrisca a fazer alusões ao rei e sua amante, os Pensamentos filosóficos e a Carta sobre os cegos, tratados que recusam a ortodoxia religiosa e sugerem uma visão de mundo materialista. Os livreiros da Enciclopédia talvez ainda não estejam informados sobre esse aspecto de quem estão contratando. Seja como for, eles intervêm para abreviar a estadia na prisão que a Carta sobre os cegos valeu a Diderot.

O trabalho pessoal de Chambers é transformado num empreendimento coletivo, totalizador, que associa especialistas de todos os campos das ciências e das artes, isto é, tanto dos saberes abstratos como dos concretos, recusando a antiga hierarquia entre os conhecimentos nobres ou “liberais” e as competências técnicas e profissionais. A essa complementaridade entre o espírito e a mão, o pensamento e o gesto, corresponde uma articulação entre três elementos: a exposição teórica inicial, os artigos e as ilustrações. 

A exposição teórica é apresentada por d’Alembert num “Discurso preliminar”, verdadeiro discurso do método que se refere a Bacon, Descartes, e Newton, e se apoia em uma árvore dos conhecimentos humanos, mostrando assim a conexão entre os saberes. Essa exposição é, ao mesmo tempo, uma história e um quadro, uma genealogia e uma classificação universal. Diderot completa o discurso preliminar com um “Prospecto” — anúncio publicitário e apresentação do projeto para recrutar subscritores, e também manifesto, que anuncia o empreendimento intelectual —, e, em seguida, com os verbetes “Arte” e “Abelha” (o primeiro, de Diderot, o segundo, do naturalista Daubenton), que serão republicados no primeiro volume da Enciclopédia

A contradição ou a dinâmica do empreendimento situa-se desde o início entre uma história sempre em movimento e um quadro estático, mas também entre o geômetra d’Alembert, da Academia de Ciências, e depois da Academia Francesa, e o filósofo Diderot, que vem do mais baixo proletariado literário e de fora das instituições. Na página de rosto, o dicionário é apresentado como obra de uma “sociedade de homens de letras”, reunidos em torno de um projeto comum, mas não de um mesmo pensamento sistemático, tampouco de uma referência dogmática qualquer. 

Os colaboradores têm em comum o gosto do saber objetivo e da difusão dos conhecimentos, mas são ideologicamente heterogêneos

Os colaboradores compartilham o gosto pelo saber objetivo e pela difusão dos conhecimentos, mas são ideologicamente heterogêneos, desde os maiores — Montesquieu e Voltaire (cuja colaboração é um compromisso simbólico em favor do projeto, já que Buffon desistiu de colaborar) — até os obscuros, desde o ateu d’Holbach (cujo ateísmo é pouco visível, é verdade, em seus artigos de química) até os padres Mallet e Yvon (responsáveis pelos artigos de teologia). São frequentes os descompassos entre os pontos de vista de autores diferentes, mas às vezes eles existem até entre artigos de um mesmo autor, situados a anos de distância uns dos outros.

No tomo 4, em 1754, por exemplo, Diderot escreve o artigo “Constância”: “É a virtude pela qual persistimos apegados a tudo o que acreditamos que deve ser visto como verdadeiro, belo, bom, decente & honesto. Não se pode contar com o que diz o mentiroso; não se pode contar com o que o homem inconstante faz”. A perspectiva é moralizante. Quem fala não é o autor das Joias indiscretas, mas o dos dramas burgueses. “Se a inconstância fosse tão grande & tão geral quanto é possível imaginar, não haveria nada de permanente na face da Terra, & as coisas humanas cairiam em um pavoroso caos.” 

Já no tomo 8 (1768), Diderot assina o artigo “Inconstância”: “Se a indiferença ou repugnância nasce do fato de que no exame [do objeto] não encontramos o mérito que nos seduzira, a inconstância é razoável; se nasce do fato de que já não sentimos em sua posse o prazer que nos causava, se ele é o mesmo, mas já não nos comove, se foi destruído por nós, se já não nos causa essa impressão que nos acorrentava, se a fada perdeu sua varinha, então, o encanto tem de cessar, & a inconstância é necessária”. À norma segue-se o pragmatismo. O verdadeiro, o belo, o bom podem ser plurais. Não se confundem em um mesmo valor. São objeto de debate. Em sua obra pessoal, Diderot escolhe o diálogo para discutir sua complexidade. 

O filósofo do Iluminismo ataca a irreversibilidade dos votos eclesiásticos e a definição do casamento como sacramento religioso. “Aquele que faz os votos que não poderá romper ou que pronuncia um juramento que o compromete para sempre, é às vezes um homem que superestima suas forças, ignora a si mesmo & às coisas do mundo.” Às vezes: a locução adverbial é prudente e a análise não se enrijece como se fosse uma máxima. A inconstância está inscrita na natureza.

Itinerários de leitura

A Enciclopédia justapõe conhecimentos de disciplinas diferentes, mas também pontos de vista variados. Remissões permitem a cada leitor apropriar-se da coleção e nela traçar seus itinerários de leitura. Como a redação e a publicação dos volumes se estendem por dois decênios, as remissões anunciam artigos futuros que jamais seriam escritos. O sistema se revela movente. Os dezessete volumes de textos são enriquecidos e aprofundados, e mesmo contraditados pelos onze volumes de ilustrações. 

As máquinas dos diversos ofícios são descritas nos artigos e expostas nas ilustrações. A complementaridade das informações fornecidas por nossos cinco sentidos é um dos objetos principais da reflexão filosófica num século empirista e experimental. A separação dos volumes de artigos e de ilustrações convida o leitor a uma confrontação entre o que se lê abstratamente e o que se lê concretamente. A verdade de um objeto não está inteiramente nem na sua apresentação verbal nem na sua figuração visual, mas num vaivém crítico, numa comparação estabelecida por cada leitor.

Um projeto tão longo e complexo supõe que os méritos de pontualidade, fidelidade e cumplicidade moral sejam às vezes preferíveis a meros critérios científicos. Diderot redigiu artigos de áreas muito díspares, desde a história da filosofia (“Filosofia dos árabes”) até as entradas lexicais dedicadas aos sinônimos (“Agradável”, “Gracioso”), desde as entradas técnicas (“Aço”, “Agricultura”) até os grandes artigos filosóficos (“Alma”, “Animal”, “Autoridade política”), desde as ciências médicas e matemáticas (“Aritmética política”, “Máquina aritmética”) até a mitologia (“Apolo”, “Anúbis”), para só ficarmos na primeira letra do alfabeto, e sem falar de toda uma série de entradas de poucas linhas que o organizador não desdenhou redigir. Apelou a cada vez a Jaucourt, “o homem dos 17 mil artigos”, polígrafo incansável e competente que substituiu os faltosos.

O jogo de Diderot entre censura administrativa e autocensura complicou-se com uma censura intermediária que corrigia os artigos para amansar o poder

Às contradições internas somaram-se os ataques externos. O projeto foi condenado como contrário aos ensinamentos da igreja. Foram vinte anos marcados por lutas e acordos. O primeiro volume, surgido em 1751, com privilégio real e dedicatória ao conde d’Argenson, ministro e secretário de Estado da Guerra, é seguido, no mesmo ano, pelo segundo. Já em 1752, uma primeira proibição atinge a publicação. Mesmo assim, os volumes seguintes são publicados no ritmo de um por ano, o terceiro em 1753, o quarto em 1754, o quinto em 1755, o sexto em 1756, o sétimo em 1757. 

A obra é suspensa no final da letra G, e em 1759 é revogado o privilégio que garante a autorização para publicação. D’Alembert retira-se do projeto. Os livreiros obtêm do poder o direito de imprimir e entregar aos subscritores os volumes de ilustrações. Os volumes 8 a 17 só são publicados a partir de 1765, sem privilégio e com endereço no estrangeiro, o de Samuel Fauche, em Neuchâtel. A Enciclopédia que tinha sido organizada, nas páginas de rosto dos sete primeiros volumes, pelos senhores Diderot e D’Alembert, a partir do tomo 8 é organizada pelo Sr. ***, o que ironicamente corresponde ao asterisco que Diderot escolhe pôr no cabeçalho dos textos que escreveu, em vez da inicial com que assina no final dos outros artigos. O editor intelectual da Enciclopédia está ao mesmo tempo presente e ausente, por razões tanto epistemológicas como políticas. O jogo de Diderot entre censura administrativa e autocensura se complicou com uma censura intermediária, do livreiro-gráfico, que corrigia os artigos para amansar o poder.

De 1750 a 1765, a pesquisa científica evoluiu nos campos médico e químico, por exemplo. A Enciclopédia justapõe estágios diversos do saber. Assim, logo se impõe a ideia de uma continuação. O complemento corresponde à expectativa do público e à concepção nova de um saber perfectível, em permanente mutação. Corresponde também aos interesses dos livreiros, que exploram o êxito da primeira coleção in-fólio. Essa primeira edição continua a ser um objeto de luxo, e em breve será seguida por outras publicações in-quarto, depois in-octavo, menos onerosa, por imitações, e até por textos reescritos e ideologicamente modificados. Foi o caso da edição de Yverdon, publicada, entre 1770 e 1780, em 58 volumes in-quarto, por Bartolomeo de Felice, com o auxílio de uma equipe mais marcadamente europeia do que seu modelo parisiense, e mais de acordo com a norma religiosa. 

De Felice explica: “Suprimos, tanto quanto nos foi possível, o número imenso de artigos essenciais que faltavam [na Enciclopédia de Diderot e d’Alembert], e cortamos aqueles que, como admite toda a Europa esclarecida, eram inúteis, tais como os artigos puramente nacionais”. A inflexão foi sobretudo ideológica, tendo sido promovida por um antigo padre napolitano convertido ao protestantismo.

No rastro da edição de Paris e de Neuchâtel, Charles-Joseph Panckoucke e Jean-Baptiste-René Robinet publicam, em 1776-77, um Suplemento, em quatro volumes de textos e um de ilustrações, seguidos por dois volumes de índices, que apareceram em 1780. Assim, os dezessete volumes de artigos e os onze de ilustrações da edição original formam, com os quatro volumes do Suplemento, o volume de ilustrações e os dois de índices, um conjunto de 35 volumes in-fólio. 

Esses índices servem de fecho a um conjunto monumental, mas a lógica de um pensamento que já não se refere a uma verdade transcendente, que se inscreve em uma pesquisa hesitante e coletiva, orientada para o progresso, supõe a necessidade permanente de atualização. Nessa perspectiva foi lançado, em 1756, em Liège, isto é, fora das fronteiras da monarquia francesa, um Journal Encyclopédique que pretendia ser o suplemento periódico da Enciclopédia, sua atualização permanente, acompanhando as publicações científicas. Circulou até 1793.

Mal foram publicados os índices da Enciclopédia, os livreiros parisienses lançaram o projeto de uma nova coleção, apoiada em uma base epistemológica diferente: não mais uma série de artigos de todas as disciplinas ordenados segundo a arbitrariedade do alfabeto, mas uma série de dicionários disciplinares, cada um com uma organização própria. Foi a Encyclopédie méthodique ou “Enciclopédia Panckoucke”, em referência ao nome do livreiro-editor. É publicada de 1782 a 1832, desde o reinado de Luís 16 até o de Luís Filipe, passando pela Revolução — um projeto que as reviravoltas políticas não interromperam. O resultado final será constituído por mais de 150 volumes in-quarto de textos e mais de cinquenta de ilustrações. Sua ambição condenava o projeto enciclopédico a um perpétuo recomeço.

Edição brasileira

Só podemos nos felicitar ao ver publicada em português uma série de seis volumes que fornece uma seleção substancial e representativa da Enciclopédia, sob a direção competente de Pedro Paulo Pimenta e Maria das Graças de Souza, ambos da USP, especialistas na filosofia do Iluminismo. Um primeiro volume traz o Discurso preliminar em edição bilíngue. Os volumes seguintes são formados por campos disciplinares, um pouco à maneira da Enciclopédia metódica. Assim, o volume 2 é articulado em torno do verbete “Enciclopédia”, o volume 3 é dedicado às ciências naturais, o 4 à política e o 5 à sociedade e às artes. Não se contentam com os artigos mais célebres, mas oferecem ao leitor a diversidade de pequenos artigos sutis, sem esquecer as ilustrações que ornam cada tomo. 

O leitor é conduzido desde a velha filosofia idealista até o novo pensamento empirista relacionado ao desenvolvimento dos saberes e das técnicas

O último volume, dedicado à metafísica, respeita, como os demais, a ordem alfabética, mas a transforma na história de uma oscilação. Começa pelos verbetes “Alma” e “Anjo”, e se encerra com “Tato, Toque” e “Tear de meias” (descrição do próprio Diderot de um tear que ele compara com o funcionamento do pensamento). O leitor é assim conduzido desde a velha filosofia idealista sob controle da teologia até o novo pensamento empirista relacionado ao desenvolvimento dos saberes e das técnicas. É uma verdadeira revolução intelectual, à imagem daquela que hoje vivemos, com os novos teares que são nossos computadores: acaso não dizemos a rede? [Tradução de Rosa Freire d’Aguiar]  

Quem escreveu esse texto

Michel Delon

Professor emérito da Sorbonne, é autor de Le principe de délicatesse (Albin Michel).

Matéria publicada na edição impressa #8 dez.17-fev.18 em junho de 2018.