Ensaio,

A tirania dos filhos

Carregada nas tintas, polêmica e cheia de humor, autora faz crítica pertinente ao modelo contemporâneo de maternidade e educação

29out2018 | Edição #16 out.2018

Lina Meruane passou a infância ouvindo discussões apaixonadas de seus pais, médicos, sobre o corpo, seus males e seus tratamentos complexos. Doença e saúde foram a sua primeira escola, seu campo semântico mais bem exercitado, tendo sido ela própria portadora de uma diabetes precoce aos seis anos de idade. 

Mais tarde, a escritora e ensaísta chilena, radicada há dez anos nos Estados Unidos, faria da enfermidade um de seus temas principais, como se vê em sua “trilogia involuntária”, composta pelas novelas Fruta podrida (2007) e Sangue no olho (Cosac Naify, 2015), protagonizadas por mulheres que dão destinos distintos a suas doenças, e pelo ensaio Viajes virales, sobre o impacto da Aids na literatura. 

Mas é com Contra os filhos: uma diatribe, ensaio de crítica cultural lançado originalmente em 2014 na América Latina e na Espanha, e agora oportunamente traduzido para o português, que Meruane se lança a uma análise cortante e cáustica, sarcástica e ameaçadora sobre uma das patologias mais graves de nosso tempo: o modelo de criação, baseado no excesso consumista, na multiplicação das exigências e obrigações maternas e na falta de assistência estatal, que coloca o filho como centro regular de todas as atividades, desejos e ansiedades do casal progenitor. 

Clientela infantil

Meruane se posiciona ferozmente contra o que denomina de “império dos filhos”, problematizando “o lugar que os filhos foram ocupando em nosso imaginário coletivo desde que se retiraram ‘oficialmente’ de seus postos de trabalho na cidade e no campo e inauguraram uma infância de século 20 vestida de inocência, mas investida de plenos poderes no espaço doméstico”.

A autora é contra a epidemia desses filhos “superestimulados”, “superprotegidos”, “mimados”, “malcriados”, “birrentos”, “agressivos”, “ditadores”, “tiranos” e, no limite, “abusadores”, que desconhecem normas e responsabilidades; é contra os filhos tratados como “clientes”, que precisam ser atendidos e têm sempre razão, num modelo de família-empresa movida pelo alto desempenho dos pais e rendimento dos filhos. 

Ela é contra essas mães que, para serem supermães, mães totais, em obediência a todo tipo de exigência, renúncia e sacrifício, “jogaram a toalha”, abrindo mão de todas as suas outras aspirações, ou aquelas que não renunciaram a nada, mas fizeram multiplicar sobre si a exigência da performance permanente, nos âmbitos público e privado, no limite do esgotamento e da exaustão. Enfim, ela se opõe a esse “contragolpe” que está sendo lançado para atrair as mulheres de volta para casa, depois de todas as suas conquistas históricas, e que atende pelo nome de… “filhos”.

Como uma anatomista do contemporâneo munida de lente de aumento, Meruane articula crítica literária e análise sociocultural, história e sociologia, ensaio feminista e diatribe. Com argumentos fortes, estilo visceral e provocador, sem nunca perder o bom humor, suas duras teses deixam aturdida qualquer uma de suas leitoras (com frequência ela interpela as mulheres). 

Exemplos mordazes, os relatos de maternidade trazidos da literatura (com a forte presença de escritoras latino-americanas), podem dar pontadas no estômago ou ferir o brio das mais incautas. Ainda mais se forem mães ou se desejarem ser, ou ainda se, como mães, tiverem aspirações profissionais e intelectuais, lendo o livro entre choros, mamadas, noites interrompidas e trocas de fralda — e não contarem com ajuda. 

Meruane — que defende muito bem sua opção de não ser mãe e se contrapõe à imposição do “lugar de fala” que tem dominado os debates culturais hoje — faz da distância uma possibilidade de ver as coisas de maneira crítica. Tal como as protagonistas de suas novelas, ela precisa ver de longe para ver melhor, com a coragem de quem tem sempre uma malinha pronta na porta de saída. 

Meruane defende bem sua opção de não ser mãe e se contrapõe à imposição do ‘lugar de fala’ que domina o debate hoje

Em um momento em que a histórica idealização e imposição da maternidade é duramente criticada por mulheres que compõem o movimento NoMo (no-mothers) ou despudoramente desconstruída por desabafos, confissões e testemunhos compartilhados em geral por mães de primeira viagem em redes sociais, em uma onda que responde pelo nome de “maternidade real” (em oposição a uma maternidade ideal), Contra os filhos chega ao Brasil acompanhado por vozes dissonantes ao tirânico mandado materno. A essas vozes são somadas também o livro Mães arrependidas, da socióloga israelense Orna Donath (Civilização Brasileira, 2017), e o filme Tully, do diretor Jason Reitman em mais uma parceria com a roteirista Diablo Cody, lançado neste ano. 

Lente de aumento

No entanto, se a “máquina reprodutora” estimulada pela religião, pelo sistema capitalista, pelos interesses de Estado e pelos porta-vozes de ideologias reacionárias — sempre presentes no momento de impedir que as mulheres possam decidir não ter filhos, mas totalmente ausentes quando se trata de preveni-los ou ajudar a criá-los — é implacavelmente posta em questão, falta ao livro em alguns momentos uma argumentação menos simplista, que deixe a lente de aumento de lado para tratar da dimensão singular e transformadora da experiência da maternidade. 

Afinal, se o matrimônio não é mais um contrato de propriedade, e ter filhos, apesar da pressão social, não é mais um destino compulsório, por que as mulheres — esclarecidas, cultas, urbanas — continuariam desejando essa experiência e projetando nela uma forma, talvez a mais forte, de realização? Não seria muito redutor encarar a maternidade como uma “via-crúcis” marcada unicamente por exaustão, culpa, autoexigência, solidão, sacrifício, renúncia, ansiedade e depressão? Serão mesmo os filhos os responsáveis por esse empurrão das mulheres de volta para o lar, um retrocesso depois da histórica conquista do espaço público?

Meruane salienta em diversos momentos que parte do problema se deve ao fato de que a gestão e a gestação dos filhos vem sendo cada vez mais privatizada, reduzida a uma rede de serviços e especialistas e gerida em função de uma série de cálculos, situação em que a mulher se vê completamente desassistida e desemparada, enquanto o Estado dá sinais de colapso. À falência ou ausência do Estado de bem-estar social, sobretudo nos EUA e na América Latina, contexto geopolítico que deveria estar mais nítido no livro, temos a responsabilização das mães por tudo aquilo que o Estado não oferece mais, cabendo a elas, exclusivamente a elas, instadas a serem perfeccionistas e controladoras, carregadas de autoexigência e, quando conseguem trabalhar, extremamente culpadas por suas prolongadas ausências, “oferecer a seus filhos vantagens comparativas num mundo cada vez mais competitivo”. 

Mas, ainda que defenda que se a “máquina de fazer filhos” obedece a interesses reprodutores do Estado, cabendo a ele garantir condições para que as mulheres possam criá-los, em nenhum momento Meruane menciona, por exemplo, a necessidade de uma creche pública e universal (como se vê, ao menos ainda, em um país como a França) como uma bandeira que deveria ser prioritária nos países democráticos. 

Só com o direito à creche o retorno das mulheres ao espaço doméstico poderia ser fruto de uma opção e não o resultado daquele cálculo perverso em que a mulher sabe que, saindo para trabalhar, não ganhará o suficiente para pagar por berçários, babás e escolinhas privadas. O papel da creche pública na França, como instância de equiparação social e delegação parcial para o Estado, é mencionado no best-seller Crianças francesas não fazem manha (Fontanar, 2013), no qual a jornalista americana Pamela Druckerman faz uma diferenciação interessante entre os modos norte-americano e francês de criação das crianças, marcados pela culpa e pelo consumismo no caso dos pais americanos e pela ideia de limite e autonomia no caso dos franceses. À luz de Contra os filhos, o livro de Druckerman poderia se chamar Crianças francesas não tiranizam seus pais.

Contra os pais

Sobre participação e colaboração paterna, Meruane minimiza a ajuda dos progenitores, valendo-se de pesquisas norte-americanas que confirmam que, mesmo em casais colaboradores, o grau de exigência, obrigações e infelicidade só aumenta. No entanto, sabemos bem que por mais numericamente insuficientes sejam esses pais, é comum, sobretudo em países latino-americanos conservadores, como o Chile e o Brasil, que aqueles que queiram partilhar efetivamente a criação de seus filhos se sintam desautorizados e deslegitimados, principalmente por mulheres. 

No Brasil, um pai que sai com seu bebê sozinho corre sérios riscos de ser atacado por mães em tempo integral e de prontidão: ele, certamente um negligente, estará deixando seu bebê com frio ou com calor, desprotegido ou muito exposto, apertado no canguru ou com o pescoço frouxo.

O fato é que, enquanto não houver uma licença-paternidade efetiva promovida pelo Estado ou praticada por empresas privadas (qualquer pessoa que sobreviva ao primeiro mês de vida de um recém-nascido sabe o quão ridículo são os cinco dias de licença garantidos por lei), a criação de vínculo entre pais e filhos e o comprometimento entre o casal estarão seriamente prejudicados, se não inviabilizados. Se alguns pais, com direito a vinte dias de licença, muitas vezes não fazem uso desse tempo, como informa Meruane com desdém, é porque, na ordem do cálculo material, eles têm medo de pagar as consequências com seu próprio emprego, na volta ao trabalho, como aliás já acontece com grande parte mulheres em estatísticas estarrecedoras. 

No Brasil, um pai que saia com seu bebê sozinho corre sérios riscos de ser atacado por mães em tempo integral e de prontidão

Mas o trecho mais polêmico do livro se encontra no mordaz capítulo intitulado “Tipos de mãe”, no qual Meruane critica o atual imperativo moral da amamentação prolongada como parte de um pacote que envolve o retorno ao parto sem anestesia, a volta das fraldas de pano, a rejeição às vacinas, o descarte da chupeta, a renúncia da mamadeira e a comidinha orgânica a preços abusivos, vistos por ela como uma guinada essencialista e moralizadora de um “feminismo ecológico” que, celebrando a diferença dos gêneros, identifica a mulher procriadora ao reino da natureza. 

Podemos incluir nesse pacote (de fibras, é claro, recicláveis) a ideologia da livre demanda; a cama compartilhada; a teoria do apego levada ao extremo; a perspectiva do bebê como um “mamífero”, ou, para as mais modernas, como um “piercing” no bico do peito da mãe; ou ainda, para as empreendedoras, como um cliente que nascerá nas mãos de doulas-consultoras e estudará em escolas-parque-empresa, destinadas a formar membros de uma elite transnacional hiperconectada e descontraída.

É difícil não concordar com os persuasivos argumentos de Meruane, que identifica nessas “feministas da diferença”, “mães totais” ou “mães-de-profissão” (que estudam os infinitos manuais da criação e pagam por todo tipo de consultoria, do sono ao desmame) um retrocesso em relação às conquistas e ao descanso que as “feministas igualitárias” conseguiram no passado. 

Para a autora, ela própria identificada a esse feminismo igualitário que tem como pilar uma Simone de Beauvoir, a mamadeira e o leite em pó seriam, por exemplo, signos da emancipação das mães à “servidão exaustiva” do “totalitarismo da lactação”. 

Bem, até aqui podemos acompanhar e compreender as transformações históricas desse debate, lembrando que cabe a cada mãe decidir, em função das circunstâncias, do seu prazer e da relação com seu bebê, o quanto e até quando quer e pode amamentar. Mas daí a afirmar, apressadamente e sem a apresentação de qualquer fonte de pesquisa, como faz Meruane, que “a única coisa que os estudos puderam demonstrar em décadas é que os anticorpos presentes no leite humano são os que protegem as crianças da indigestão” e que, portanto, “não está medicamente justificada a extensão da lactação” é um grave equívoco. 

Neste ponto, a ensaísta, apesar de se intitular “igualitária”, reduz a importância e o impacto do aleitamento, eliminando fatores essenciais à questão como os interesses de indústrias alimentícias multinacionais, o alto custo das latas de leite artificiais e o fato de que a maior parte das mães do planeta, além de viver abaixo da linha da pobreza, não possui segurança alimentar no que diz respeito ao acesso à agua potável. 

A recomendação da amamentação prolongada pela OMS (Organização Mundial de Saúde) — por mais que possa ser discutida — visa em primeira instância a sobrevivência de milhares de recém-nascidos e o combate à desnutrição infantil. Nada disso passa pelo radar da autora, mais preocupada que está com aquelas mães burguesas para as quais os filhos são tornados verdadeiras commodities no interior de uma série de cálculos e investimentos.

Maternidade possível

Para não jogar fora o bebê com a água da bacia, o inspirado e absolutamente necessário ensaio de Lina Meruane poderia ao final se abrir para outras perspectivas que não aqueles discursos ameaçadores típicos de quem vê à distância de um satélite. 

A autora está coberta de razão quando diagnostica e denuncia que o império dos filhos tiranos, nossos carcereiros e futuros patrões para os quais nem o céu é o limite, será a nossa condenação. Mas seria preciso ainda acrescentar que cabe a nós, mães e mulheres, experimentar e lutar por outro tipo de maternidade, cujo amor e doação não sejam vividos solitariamente como renúncia, sacrifício, culpa e autocobrança. 

No lugar de uma “maternidade real”, muitas vezes queixosa, seria preciso pensar numa “maternidade possível” — no dizer da psicanalista Vera Iaconelli — como abertura à contingência e à alteridade de um filho, sempre um outro, cujo amor gratuito e gratificante, lúdico e radicalmente transformador, pode também estabelecer vínculos coletivos e ser, justamente, um antídoto aos cálculos privados de nosso tempo.

Quem escreveu esse texto

Ilana Feldman

Crítica de cinema, é co-organizadora de David Perlov: epifanias do cotidiano (Centro da Cultura Judaica) e Estética da Biopolítica (Ministério da Cultura).

Matéria publicada na edição impressa #16 out.2018 em outubro de 2018.