Divulgação Científica, Ensaio,

A origem da beleza

Físico e naturalista francês visita o Pantanal e mergulha na lei científica que produz maravilhas no mundo vivo

21dez2022 | Edição #65

O Pantanal acorda cedo. Antes mesmo das primeiras luzes do dia, todo um concerto prepara a chegada do Sol. Cada animal começa a cantar em determinada hora. Na penumbra, os aracuãs-do-pantanal entoam uma versão do cocoricó dos nossos galinheiros. Depois, sobre o fundo azul-escuro do céu, é a vez dos líricos bugios. Aos primeiros raios rosados, surgem os vibratos das araras, os vocalises dos mutuns, os gorgolejos das garças. Nessa região, é impossível dormir até tarde: uma barulheira constante se eleva das árvores e dos pântanos, ribombando cantos que você não ouvirá em nenhum outro lugar do mundo.

Mas o concerto mais estranho do Pantanal acontece todas as manhãs bem longe de nossos ouvidos, nas profundezas dos charcos. Você só o ouvirá se mergulhar a cabeça na água — coisa que o olhar atento dos jacarés onipresentes facilmente o dissuadirá de fazer — ou afundar nela um tubo, como um telefone, para ouvir esse outro mundo.

Os peixes do Pantanal são tagarelas. Em um emaranhado de raízes e plantas aquáticas, uma miríade de espécies compõe um samba endiabrado com instrumentos variados. A corvina toca tambor: ela bate no próprio ventre como todos já fizemos quando crianças depois de uma boa refeição. A bexiga natatória desse peixe, uma bolsa cheia de ar, acentua o eco de seu tantã ventral. Alguns bagres tocam xilofone com seus ferrões. Outros grunhem, berram ou cantam. O barulho que ouvimos dentro d’água  ecoa os sons que ouvimos na terra, e quando o dia nasce os dois mundos o recebem com uma saudação musical.

O segredo do músico

Entre os grandes músicos de água doce do Pantanal, o surubim se assemelha a um primeiro tenor. Ele canta com voz aveludada e seus intrigantes vocalises me deram vontade de conhecer sua história, ir a seu encontro. Não fiquei decepcionado. Esse bagre detém um segredo, o segredo da beleza dos animais. É um segredo científico, mas quase mágico, uma lei íntima e oculta do mundo vivo, muito simples, mas que produz as mais incríveis maravilhas. É como se o surubim tivesse mergulhado nos impenetráveis meandros da beleza do mundo e voltado com sua fórmula mágica.

O segredo do surubim explica, entre outras coisas, por que a onça é tão elegante, por que as borboletas nos maravilham e por que o bebê da anta se torna mais feio ao crescer. Para sermos iniciados nesse segredo, mergulhemos a seu encontro.

Em um emaranhado de raízes e plantas aquáticas, uma miríade de espécies compõe um samba endiabrado

Você provavelmente já viu o surubim em algum restaurante, servido em postas sem espinhas e mais conhecido como pintado. É assim que nos referimos à espécie de surubim que vive no Pantanal (Pseudoplatystoma corruscans), mas existem oito espécies espalhadas por diferentes bacias hidrográficas da América do Sul. Como o apelido “pintado” sugere, os surubins são peixes com pintas. Eles exibem, em seu couro liso e prateado, elegantes padrões pretos, como pinturas rituais. Com certeza são um dos mais belos peixes de água doce do mundo, venerados por muitos povos ameríndios.As oito espécies de surubim são quase idênticas: mesma forma alongada, mesmas nadadeiras pontudas, mesmos bigodes compridos de Confúcio. Os oito primos apresentam uma única diferença significativa: as pintas. Cada espécie tem os próprios padrões. O pintado do Pantanal usa um vestido de bolinha à moda de Grace Kelly. Seu primo, o rajado do Orinoco, é listrado como uma zebra. O cachara do Xingu combina os dois: listras verticais e pintas. O caparari do Amazonas é ornado de padrões reticulados, como labirintos desenhados na pele. É nesses padrões que podemos decifrar o segredo dos surubins. Como todos os grandes enigmas do mundo, ele está escrito em signos misteriosos, e tem como pergaminho o couro do surubim.

Cores carnívoras

Na pele dos surubins encontramos todos os padrões básicos de todos os animais do mundo. Manchas, listras, pintas, e todas as combinações intermediárias. O fato de um único gênero de peixe apresentar uma gama tão ampla de padrões não é anódino. Ele sugere que todos esses padrões teriam uma mesma origem biológica, e que as diferenças entre pintas e listras se deveriam a poucos fatores. Que haveria, entre pintas e listras, tão pouca diferença quanto entre o surubim do Orinoco e o do Pantanal. E se todos os padrões do mundo vivo tivessem a mesma origem? E se todos os desenhos da natureza, das listras das zebras às manchas das girafas, passando pelos ocelos dos pavões, e se todos esses desenhos decorressem do mesmo fenômeno? Um fenômeno resumido no couro das oito espécies de surubins?

Em 1952, o matemático Alan Turing, pai da informática, refletia muito sobre o mundo vivo. Ele tentava explicar cientificamente o surgimento dos padrões e das formas que observamos na natureza. Turing não conhecia os surubins. Ele não sabia, portanto, que esses peixes guardavam a resposta para suas perguntas. Em vez de viajar para o Pantanal e interrogar os bagres, ele começou a pensar. Ele pensou por um bom tempo e acabou concebendo uma teoria matemática para explicar o surgimento dos padrões na pele dos animais.

Turing teve uma ideia bastante original. Ele imaginou que as células que carregavam os pigmentos das cores na pele dos animais se comportavam como predadores e presas, umas tentando constantemente devorar as outras. Durante o crescimento de um animal, as cores que aparecem em sua pele e se difundem por ela se entregariam a uma predação impiedosa. Com a cor predadora devorando a cor presa e a cor presa alimentando a cor predadora, se instauraria, como em um ecossistema, um equilíbrio entre as diferentes cores. E estas se espalhariam pela pele do animal segundo padrões, com ilhas onde as cores “presas” prosperam em paz, zonas onde as cores “predadoras” abundam, fronteiras intransponíveis. Assim se formariam listras, ocelos, manchas.

Turing previu que esse mecanismo se produzia em todos os animais. Ele postulou a existência, na pele dos bichos, de entidades coloridas que desempenhariam o papel de presas e outras que desempenhariam o papel de predadores, e que a interação entre elas formaria os desenhos que observamos: as estrias da zebras, as pintas do leopardo.

Era uma simples suposição. Mas na qual Turing acreditava muito. Para ele, ao interagir como presas e predadores, as cores poderiam desenhar todos os padrões observados no mundo animal. E algumas décadas mais tarde, outra invenção de Turing, a informática, corroborou sua hipótese. Cálculos informáticos simularam o fenômeno imaginado por Turing. Determinavam-se os parâmetros que regiam o sistema: a voracidade dos predadores, a fecundidade das presas, o tamanho da pele do animal. O computador calculava o resultado e apresentava os desenhos obtidos. E… surpresa: dependendo dos valores dos parâmetros, o computador desenhava manchas, listras, ocelos, pintas etc. Todos os padrões do reino animal apareciam na tela, para grande maravilhamento da comunidade internacional.

Do fundo de seu rio pantanoso, o surubim teria rido do trabalho de todos aqueles pesquisadores. Ele, simples peixe, conhecia aquela “descoberta” havia milênios.

A teoria de Turing funcionava perfeitamente nas telas dos computadores. Mas ela continuava muito teórica. Por mais de sessenta anos, ninguém conseguiu identificar aquilo que, na pele de um animal, desempenhava o papel de “cor presa” e de “cor predadora”, e cujas existências Turing postulara. Acreditava-se que o fenômeno existia, mas não se tinha nenhuma prova dele. A teoria era bonita: uma única lei matemática simples para explicar inúmeras formas complexas. Mas ela não passava de uma teoria.

E se todos os padrões da natureza tivessem a mesma origem? E se todos os desenhos decorressem do mesmo fenômeno?

Foi preciso aguardar o início dos anos 2020 para que o surubim finalmente decidisse acabar com esse suspense. Nas bacias remotas da Amazônia, surubins de espécies até então desconhecidas se deixaram capturar e estudar. E os cientistas notaram que a família dos surubim apresentava, sozinha, toda a gama de padrões básicos do mundo vivo.

O modelo informático de Turing permitiu reproduzir à perfeição os desenhos de todos os surubins, e passar do padrão de uma espécie para o de outra através da variação dos parâmetros do modelo, retraçando assim a história evolutiva dessa linhagem de peixes. E mais: atribuindo aos parâmetros valores intermediários, entre os que correspondiam a duas espécies diferentes, o modelo apresentava padrões estranhos… e esses padrões correspondiam exatamente aos do surubim híbrido nascido da união das duas espécies!

Todos esses indícios convergentes deixaram os biólogos com a pulga atrás da orelha: se um animal pudesse provar a validade da teoria de Turing, esse seria o surubim! O couro do surubim foi analisado em detalhe no microscópio. E foi então que se observaram células pigmentadas que interagiam entre si, exatamente como predadores e presas. O surubim acabava de demonstrar à humanidade que a intuição de Turing estava certa. E de comprovar a grande lei fundamental na origem da beleza do mundo vivo.

Turing, infelizmente, nunca viu a comprovação de sua teoria. Ele teve a infelicidade de ser homossexual numa época em que a lei britânica proibia a homossexualidade. Apesar de sua condição de herói da Segunda Guerra Mundial, ele foi condenado a uma violenta castração química, que o enlouqueceu e acabou por matá-lo em 1954. À sua maneira, o surubim também honra com seus desenhos esse gênio de destino trágico.

Da anta à onça

Hoje sabemos que no couro dos surubins se desenha um caso paradigmático do belo e simples fenômeno que colore os animais do mundo todo. Basta olhar para os surubins para compreender todos os segredos dos padrões animais! Pedimos, então, que o surubim nos explique de onde vem a beleza dos grandes animais do Pantanal.

Os surubins menores (jovens ou espécies de pequeno porte) são listrados, enquanto os maiores têm pintas. Segundo o modelo de Turing, o tamanho do animal condiciona seus padrões: listras quando o animal é pequeno, pintas quando ele é maior. É por isso que as antas, cobertas de lindas listras ao nascer, perdem todas quando crescem. As listras da jovem anta vão se transformando progressivamente em manchas. Essa transformação permite que ela se camufle entre os jogos de luzes e sombras da floresta. Na idade adulta, porém, você deve ter percebido que a anta perde todas as manchas.

O modelo de Turing também prevê isso: quando um animal é grande demais, os padrões se diluem e desaparecem. E o surubim, é claro, pode nos explicar isso à sua maneira. Basta encontrar um surubim gigante, como seu imenso primo piraíba. Esse peixe, muito próximo dos surubins mas de dez a vinte vezes maior, tem uma cor cinza uniforme. Quando jovem, porém, ele é listrado, depois se torna pintado, como os surubins e as jovens antas. O mesmo fenômeno gera os padrões das jovens corças, e o surubim teve a elegância de nunca reivindicar nenhum direito autoral diante do sucesso do filme Bambi.

A ciência pode conter tanta poesia quanto uma lenda ameríndia. E os mistérios do mundo às vezes se revelam em belas histórias

O surubim também nos ensina de onde vem o vestido elegante das onças. Nos pontos onde o corpo da onça é largo, ela é pintada; onde ele fica mais estreito, na altura do rabo, ela tem listras! Os ensinamentos do surubim não param por aí. O peixe também nos mostra de onde vêm os ocelos das borboletas e das piranhas, as manchas dos pavões, as estrias da garça…

A beleza do Pantanal adquire um novo sabor depois que sabemos que ela vem de uma única e simples lei matemática, escrita em signos evidentes no couro dos surubins.

Corrida contra o tempo

A ciência pode conter tanta poesia quanto uma lenda ameríndia. E os segredos do mundo às vezes se revelam em belas histórias. Mas todas as boas histórias precisam ter uma moral.

Então, aos números. Acabamos de ver como oito espécies de peixes fizeram a humanidade descobrir um grande princípio biológico. Estima-se que mais de 325 espécies de peixes povoem as águas do Pantanal, sem contar todas as que ainda não são conhecidas. Imagine o número de descobertas que todos esses peixes nos reservam! Grandes leis científicas e revoluções físico-químicas ou médicas com certeza se escondem sob as águas e plantas do Pantanal, esperando por nós para descobri-las.

Nos grandes rios brasileiros, barragens exterminam centenas de espécies antes mesmo que elas sejam descobertas pela ciência

Se tivermos tempo… Pois o Pantanal está ameaçado. Os pântanos resistem bem, mas o cerrado, a savana de onde vem toda a água do Pantanal, é consumido por todos os lados pela mineração e pela exploração agrícola. Nos últimos cinquenta anos, 80% desse território foi destruído. Nos grandes rios brasileiros, as barragens exterminam centenas de espécies antes mesmo que elas sejam descobertas pela ciência. Junto com essas espécies desaparece um tesouro de conhecimento, mas também a base de subsistência dos povos ameríndios, que eram os únicos a conhecer seus segredos. Até os surubins estão ameaçados, impedidos de migrar pelas barragens, explorados pela pesca comercial.

Assim como seus desenhos são um modelo para os desenhos de todos os seres do Pantanal, o destino do surubim reflete o destino de todo seu ecossistema. Nós temos escolha. Faremos a balança pender para o lado da exploração cega, que transforma o peixe listrado em fritura de fast food, e a água na qual ele vive em irrigação para os campos de milho? Ou para o lado dos indígenas que veneram o animal que lhes permite viver, dos cientistas que com ele aprendem novos saberes, e da pesca esportiva que desenvolve um ecoturismo sustentável, só para admirá-lo?

É urgente salvar esses tesouros!

(Tradução de Julia da Rosa Simões)

Quem escreveu esse texto

Bill François

É autor de Eloquência da sardinha (Todavia)
 

Matéria publicada na edição impressa #65 em outubro de 2022.