Encontro de Leituras,

O óbvio surpreendente

Contos inéditos de Nelson Rodrigues espalham humor e escândalo sobre os abismos da miséria humana

27fev2024

Ao ler as 25 histórias inéditas de Nelson Rodrigues salvas, por esse livro, das prateleiras em que estavam há sessenta anos — e que espalharam humor e escândalo no Brasil um pouco antes de eu nascer, em Portugal, lá para trás no século 20 —, sinto-me o português “de monograma na camisa” ou o outro “luso” desse boteco com telefone (do conto “Boneca”) assistindo sem hipótese de fugir, mas cada vez com maior interesse, a mais um abismo da miséria humana.


A vida como ela é25 histórias inéditas, de Nelson Rodrigues

Um homem telefona à jovem amante porque encontrou maneira de encontrar com ela nesse dia, só que a amante não pode, uma vez que naquele dia vai aceitar o noivado com outro, e vem ao telefone a mãe, depois o pai, todos a viverem à custa do homem que já grita ao telefone, a insistirem com bom senso se a filha pode ir dormir com ele só no dia seguinte, ou então se aceita a filha mais nova… Isso vai — obviamente, mas surpreendentemente — correr mal. Para nosso bem.

Cheguei tarde, como quase todos em Portugal, à vontade de ler tudo o que Rodrigues escreveu — em notícia, ficção, crónica, teatro, cinema, TV, futebol — isto é, claro, à feroz impossibilidade de o conhecer. Até porque, além da quantidade bíblica de escritos, o homem foi, e é, muitas coisas contrárias.

Estive a pensar se a Nelson não se aplica o que Camilo Castelo Branco escreveu sobre as mulheres: “Há, em cada mulher, quatro mulheres incompreensíveis, pensando alternadamente como se hão de desmentir umas às outras”. Creio que os dois escritores, como virtuosos da língua portuguesa, e levantadores de sarilhos, se cruzam algures na história, nem que seja num espelho de simplicidade e profundidade de campo, com frases que acertam à primeira. Por exemplo, se Camilo descreve um jovem “alegre como a felicidade”, Nelson Rodrigues nos descreve uma moça de olhar “triste como um martírio”.

As crónicas desenterradas depois de sessenta anos estão cheias de fios de equilibrismo e contradição

A minha admiração por Nelson Rodrigues é retrospetiva. Só nos últimos anos se tem feito em Portugal a edição sistemática da sua obra, na Tinta-da-China, por sinal minha editora. Mas temos uma velha intimidade, pois, em jovem, quando lançámos em Lisboa, em 1990, o jornal diário Público — com jornalistas que bem podiam andar de suspensórios (e fumávamos muito, ó, sim, e bebia-se na redacção) —, dava-se este espectáculo inesquecível: o director e mestre fundador Vicente Jorge Silva atravessava as avenidas de computadores aos urros e uivos: “Óbvio ululaaaaante!, onde está quem escreveu esta porcaria?!”. 

Quem disse coisa tão engraçada e certeira? Nelson Rodrigues, o brasileiro. Os brasileiros são mestres na crónica, assim se falava. Mas, sem tempo nem publicação à mão, sedimentava-se o meu conhecimento em frases que eram tijolos de conhecimento: o homem que é “flor de obsessão”, o brilhante autoconhecedor que sabia dizer “trabalho mais do que Ben-Hur”. Agora, para ir um pouco à frente antes de retroceder (como num dos seus incríveis saltos temporais no teatro), assimilei a mensagem e explico aos meus alunos da Universidade Nova de Lisboa, portugueses e brasileiros, que, se querem ser cronistas, meus caros, preparem-se: somos escravos das galés.

Exponho ainda que, em certas peças de teatro tão modernas e intrusivas, é continuar a ter cuidados como Nelson, pois, qualquer dia, no meio do público, “Hamlet nos bate a carteira”. Ou a incrível densidade poética e a verdade de algumas das “confissões”, quando abre a intimidade do seu sofrimento, como na cegueira da bebé recém-nascida, Adelaide, “a menina sem estrela”, não perdoando ao médico que não lhe mente a si, ao pai.

Como sabe o leitor, Nelson Rodrigues viveu acusações de reaccionarismo, ligação à ditadura militar (é um eco que ainda o prejudica, também em Portugal), mas sofreu enormes censuras, proibições que o “anjo pornográfico” resolveu revertendo a hipocrisia e a sujidade dos que o acusavam para a própria cabeça deles. Também D. H. Lawrence dizia que “ninguém sabe o que a palavra obscena quer significar”, e perguntava Henry Miller, supercensurado nos Estados Unidos há pouco menos de um século: a obscenidade nos transcende ou nos é imanente? Como antes, em Rimbaud, o que estará em causa é o tormento da busca da verdade.

Essas 25 crónicas inéditas estão cheias desses fios de equilibrismo e contradição. Quando uma personagem diz a outra: “Não te disse? Lógico, seu animal, tudo o que é normal, lícito, não interessa”, e dá um murro na mesa para afirmar: “Filosófico e sórdido: só pecado tem graça”. Aquele homem que tem “ciúme até de poste”. Há os que resolvem os ciúmes dando “um tiro na boca” do outro.

Caldo rodrigueano

Portugal, de onde vos escrevo, deverá também olhar os 25 tesouros de Nelson Rodrigues finalmente desenterrados. Ajudou, é preciso dizer, a publicação da biografia escrita por Ruy Castro, O anjo pornográfico (Companhia das Letras). Foi fascinante conhecer o caldo em que Nelson Rodrigues, o pai e os irmãos (Roberto seria, como sabemos, assassinado diante de Nelson por uma mulher ofendida com a matéria íntima publicada pelo jornal da família) se criaram jornalisticamente. As páginas do submundo carioca com casais que se esquartejavam por ciúme; filhos que torturavam pais entrevados; mães que seduziam filhos; irmãs que se matavam pelo mesmo homem; padres estupradores; e toda sorte de adultérios.

Nelson dizia que A vida como ela é não era ficção, e sim realidade. Isso tem tanto de ironia e sarcasmo como de certeza. Também eu, em Lisboa, ouvi: “Onde é que inventas estas coisas?”. Podia vos contar dos meus trinta anos de histórias de tribunal: a briga das mulheres do marinheiro adúltero; a mulher que se cortou com vidros para culpar o namorado; a mãe que procura o filho apanhado com prostituta; aquele que conta ao amigo que viu a mulher com outro e perde o amigo; mães espancadas; irmãos que se traem; e o pai que fez um filho-neto à filha e morreu em cima dela. Terrores e comédias pendurados em prateleiras, à espera de ser resgatados. Ofereceria a Nelson Rodrigues a história que ele quisesse, ele nos deu muitas.

Quem escreveu esse texto

Rui Cardoso Martins

Escritor, roteirista, cronista e professor universitário, é autor de Levante-se o réu (Tinta-da-China).