Encontro de Leituras,

Pontes feitas de poesia

Edições brasileiras de obras dos portugueses Ruy Belo e Luís Miguel Nava convidam a ultrapassar abismos culturais entre os dois países

01abr2024 • Atualizado em: 01ago2024 | Edição #80
O poeta português Ruy Belo no início dos anos 70 [Divulgação]

O lançamento de Poesia, que reúne a totalidade dos poemas escritos por Luís Miguel Nava, e Toda a terra, livro seminal dentro da obra poética de Ruy Belo, ambos pela Assírio e Alvim Brasil, é uma boa oportunidade para pensarmos o abismo cultural que existe entre o Brasil e Portugal. A cultura poética pode ter em nosso tempo a tarefa de descolonizar porque quase sempre constrói pontes entre diferenças, uma tarefa que deveria ser ainda mais fácil quando há similitudes e vasos comunicantes entre culturas que foram lenta e sutilmente separadas justamente pela falta, no passado, de um processo efetivo de descolonização que mesmo em curso nos dias atuais ainda é lento e corre o risco de permanecer inconcluso. 

Se Portugal inventou o Brasil, uma invenção enigmática que nós brasileiros não conseguimos ainda decifrar — embora sejamos nós mesmos os indícios e as senhas esquecidas desse enigma —, seguiu-se a essa invenção a de vários outros abismos culturais e educacionais que não apenas ampliaram a distância entre as duas culturas, mas também as reduziram a clichês preguiçosos e alegorias-fantasmas.

Nava evoca a dimensão do corpo através da palavra; Belo é propriamente um poeta da palavra

Para além desses abismos-ruídos, a poética pode ser uma chave-mestra para abrir portas, derrubar muros e desfazer antigas e insistentes ideias equivocadas que o Brasil tem de Portugal e Portugal do Brasil. Trabalhos como os das editoras Assírio e Alvim e Tinta-da-China (que publicam nos dois países) e outros pioneiros — como o lançamento da primeira antologia de Herberto Helder pela Iluminuras, organizada por Jorge Henrique Bastos, dos Diários de Maria Gabriela Llansol pela Autêntica e das obras de um dos poetas em questão, Ruy Belo, pela 7Letras, organizadas por Manoel Ricardo de Lima — serviram como vislumbres do projeto de uma ponte a ser construída para atravessarmos esses abismos.

Por que a ponte jamais foi construída de fato? Portugal não é só Fernando Pessoa, Saramago, o fado e Manoel de Oliveira, o Brasil não é só Drummond, futebol, Chico Buarque e as novelas televisivas. Uma verdadeira política de intercâmbio cultural, que surpreendentemente serviria também como parte de um movimento de descolonização ao revelar para ambos os povos surpreendentes alteridades escondidas, poderia erguer a anunciada ponte por sobre esse abismo que permanece.

Dito o óbvio que precisa ser repetido mil vezes, vamos aos dois livros em questão. Os textos em Poesia, de Nava — que inclui toda sua poética publicada em vida e alguns inéditos — são marcados pela ideia de uma dissolução física do ser derivada de uma possível visão derrisória do mundo muito presente em seus poemas altamente filosóficos.

Vertigem da carne

Nava talvez tenha sido um místico negativo que cultuava a morte como uma ascese do corpo, nos moldes do escritor japonês Yukio Mishima. Há o caráter homoafetivo dos poemas, de Nava, que ele foi capaz de transfigurar numa dimensão imagética de alteridade muito cifrada, quase hermética, que espantosamente não ofusca as camadas densas e difíceis de suas experiências.

O que estamos tentando fazer aqui não é elucidar seus poemas perfeitamente entrelaçados a sua vida enigmática, aristocrática e ao mesmo tempo desolada e inquieta, mas sim, com essas aproximações, tornar mais nítidos os sinais que neles elaboram uma espécie de vertigem da carne em suas diversas imagens alegóricas, de um êxtase estilhaçado e da pulverização do corpo em confronto com o mundo. Versos como estes de “Matadouro” parecem realizar um movimento em direção ao trágico assassinato do próprio poeta em maio de 1995 em Bruxelas:

Dancei num matadouro, como se o sangue de todos os animais que à minha volta pendiam degolados fosse o meu. Dancei até que em mim houvesse espaço para um poema de que todas as imagens depois fossem desertando.

Toda a terra, de Belo, está no extremo oposto, mas não na contramão, uma vez que ambas as poéticas, cada uma a seu modo, conjuga o problema humano com o problema português. Poderíamos até falar de um exílio exterior em Nava e de um exílio interior em Belo, poeta de forte ligação com o catolicismo, que rompeu com a Opus Dei para poder viver sua liberdade com as palavras e com elas ir do sublime até o cotidiano, algo que fica evidente nestes versos do poema “Em louvor do vento”:

Eu estou deitado e então sinto a ponta dos pés nos lençóis recém-mudados
sinto como mais uma parte do meu corpo os próprios lençóis
e imediatamente faço calar o coro que na rádio canta o messias de haendel
e abre assim um espaço que não é o do meu quarto mas sim o da catedral
de toledo aconchegada na penumbra de certas tardes dos fins de maio
O vento vem na sua suavíssima voz e toda a gente morre de súbito para mim

Se Nava é um poeta que evoca a dimensão do corpo através da palavra, Belo é propriamente um poeta da palavra. Não por acaso outro livro seminal em sua obra chama-se Homem de palavra(s). Podemos dizer que existe, por um lado, uma dimensão metafísica da memória nos poemas de Belo e, por outro, uma meditação sobre a própria escrita, ou seja, sobre a palavra e seus desdobramentos. Tanto na dimensão onde há a evocação de uma tensão entre memória e esquecimento quanto nas meditações sobre a escrita existe uma tentativa de enfatizar a fugacidade como um vetor do humano, e isto é maior em seus poemas do que a influência da religiosidade. Parece que a poética de Belo procura considerar a universalidade dos valores humanos como algo entrelaçado ao viver cotidiano. Tudo isto está mais do que presente em Toda a terra, que pode ser lido com uma síntese de toda a sua obra.

Seria maravilhoso se as pessoas que conhecem e leem Fernando Pessoa fossem além na mesma direção e descobrissem as poéticas de Ruy Belo e Luís Miguel Nava. O fato é que facilmente inventamos abismos e raramente percebemos que eles crescem por cima das pontes que estavam desenhadas no interior dos corpos, ou seja, no espaço do pensamento entre uma palavra e outra.

Quem escreveu esse texto

Marcelo Ariel

Poeta e ensaísta, é autor de Nascer é um incêndio ao contrário (Kotter) e acaba de lançar Afastar-se para perto: Ficção-Vida (Reformatório).

Matéria publicada na edição impressa #80 em abril de 2024.

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