Divulgação Científica,

Um punhado de feijõezinhos

Bom humor é o que une estilos de escrita quase opostos de Stephen Hawking e Richard Feynman

28fev2019 | Edição #20 Mar.2019

É difícil evitar a sensação de que, no seleto rol dos cientistas que se tornam celebridades, os físicos predominam, em especial quando decidem explicar questões cósmicas ao público em geral. Nessa lista, o britânico Stephen Hawking (1942-2018) reinou soberano durante décadas, combinando o talento para escrever best-sellers — e participar de episódios de Star Trek e Os Simpsons — com a imagem dolorosa de gênio progressivamente paralisado por uma doença incurável. O americano Richard Feynman (1918-1988), por outro lado, nunca chegou perto de se tornar uma figura reconhecível no mundo todo, apesar de ter recebido o Nobel que escapou a Hawking. Feynman continua sendo, em certo sentido, o físico que todos os demais físicos gostariam de ser: brilhante, carismático, cult.

Ler em paralelo dois livros de divulgação científica assinados por eles lança uma luz instrutiva sobre tais diferenças e semelhanças. As personas públicas de ambos, de fato, parecem se refletir no teor dos textos e, em diversos aspectos, são bastante parecidas. Tanto Hawking quanto Feynman cultivavam certa fanfarronice, a fama de galanteadores e o costume de não levar nem a física nem a si mesmos muito a sério. 

Enquanto Hawking aparecia na série cômica The Big Bang Theory e fazia apostas sobre suas hipóteses acerca de buracos negros com colegas (valendo uma enciclopédia), Feynman tocava bongô e frequentava clubes de striptease. É de se imaginar que os dois teriam se divertido muito juntos numa mesa de bar (eles se conheceram durante o tempo que Hawking passou na Califórnia nos anos 1970, mas não há registros detalhados sobre o encontro).

O humor e a tentativa de dessacralizar as fronteiras da ciência perpassam tanto Breves respostas para grandes questões, de Hawking, quanto A estranha teoria da luz e da matéria, assinado por Feynman. Ambos os livros, além disso, foram organizados por outras pessoas a partir de materiais díspares (um arquivo com reflexões sobre perguntas existenciais no caso do britânico, e o registro de quatro palestras feitas nos anos 1980 pelo vencedor do Nobel). No entanto, é justo dizer que as semelhanças provavelmente terminam aí.

Palavras do oráculo

É claro que o autor do best-seller Uma breve história do tempo fala do Big Bang, de buracos negros e do sonho de unificar as principais teorias da física em Breves respostas, mas os leitores se acostumaram a ouvir Hawking como quem ouve uma versão moderna do oráculo de Delfos, e ele parece se divertir com o ofício oracular. Talvez por isso mesmo, mete sua colher em temas que, a rigor, pouco têm a ver com as condições extremas da matéria e da energia nas vizinhanças de um buraco negro, ou com a física teórica de modo geral — como a existência de Deus e da vida após a morte, ideias já contestadas em diversos outros livros pelo ateu Hawking.

Outro assunto favorito do físico, o futuro da espécie humana e as ameaças que o rondam, é amplamente explorado nas respostas a questões como “Deveríamos colonizar o espaço?” (sim, pelo amor de deus — com minúscula mesmo —, diz Hawking) e “A inteligência artificial vai nos superar?” (é bem provável que sim, o que significa que é preciso embutir sensores éticos nas nossas máquinas inteligentes o quanto antes, além de desenvolver tal tecnologia com cautela, argumenta ele). Falando em cautela, caso você seja um entusiasta da busca por vida inteligente fora da Terra, é bom ter em mente que Hawking encarava com sérias reservas o contato com ets tecnologicamente avançados (se é que eles existem). Uma humanidade muito convidativa para visitantes do espaço pode acabar desempenhando o mesmo papel desastroso dos indígenas que receberam espanhóis e portugueses de braços abertos na Era dos Descobrimentos, segundo o cientista.

Diante de tamanha diversidade de assuntos e da relativa brevidade (sem trocadilhos) do livro, é natural que o britânico apenas sobrevoe muitos de seus temas. O conteúdo científico é menos suculento do que poderia esperar o leitor interessado em entender a física do século 21. Apesar das metáforas inegavelmente engraçadas — como a que compara a inflação descontrolada do espaço nos primórdios do universo ao aumento de preços pós-Brexit no Reino Unido —, muitos conceitos-chave explicados de passagem podem deixar o público à deriva.

Matemática maia

Feynman, por sua vez, ilustra o método que adotou nas palestras que deram origem a seu livro com uma analogia arqueológica. Imagine, propõe o físico, que você é um habitante de alguma cidade-Estado da civilização maia, centenas de anos antes da chegada dos europeus, e fica sabendo que os sacerdotes da sua metrópole conseguem calcular todo tipo de coisa interessante acerca do movimento dos astros, como o momento exato do surgimento e desaparecimento de Vênus no firmamento ou as noites em que haverá eclipses da Lua.

Você, todo curioso, procura o sacerdote e pergunta se ele pode explicar seus maravilhosos métodos astronômicos. Mas como você não está familiarizado com conceitos básicos de aritmética (afinal, os maias inventaram o conceito de zero, mas não a educação pública para as massas), o douto servo dos deuses precisa começar… do zero. Contando o que é subtração, por exemplo. “Suponha que você quer subtrair 236 de 584”, diz o sacerdote maia de Feynman. “Primeiro conte 584 feijões e os coloque em uma vasilha. Depois tire 236 feijões e os deixe de lado. Por fim, conte os feijões que ficaram na vasilha.”

“Vocês diriam: ‘Meu Quetzalcoátl! Que tédio — contar feijões, pôr na vasilha, tirar da vasilha — que trabalheira!”, escreve o físico. De fato, admite ele, o exercício pode parecer tedioso, mas é o único jeito de apresentar ao sujeito não especializado uma ideia real do mecanismo da subtração sem que ele passe pelo treinamento formal que só anos de escolaridade são capazes de proporcionar.

No caso da subtração propriamente dita, claro que dizer isso é forçar a barra, mas o símile funciona muito bem para a eletrodinâmica quântica, a área da física que, como diz o título da obra, descreve as interações entre as partículas de luz, ou fótons, e as de matéria, como os elétrons. Quem não teve a sorte de passar alguns anos na pós-graduação em física não tem como dominar o “jeito fácil” de lidar com o tema — as ferramentas matemáticas que resolvem a questão em pouco tempo. A alternativa é apelar para métodos bem mais graduais — e muito mais braçais — para tentar chegar ao mesmo resultado.

A intenção é mostrar como funciona uma área muitíssimo bem estabelecida da física e, ainda assim, quase totalmente desconhecida fora dos laboratórios

A escolha desse tema tem ainda outra virtude, argumenta o autor. Em vez de escarafunchar as fronteiras do conhecimento sobre a natureza e correr o risco de “confundir as pessoas com um monte de teorias ainda meio cruas, analisadas apenas parcialmente”, a intenção é mostrar como funciona uma área muitíssimo bem estabelecida da física, com sólidos fundamentos experimentais e teóricos e, ainda assim, quase totalmente desconhecida fora dos laboratórios. E estamos falando, ademais, do mundo quântico, o dos estranhos fenômenos subatômicos nos quais partículas parecem fazer dois caminhos ao mesmo tempo ou surgir e ser aniquiladas espontaneamente no vácuo — prato cheio para bobagens místicas desde a jurássica era pré-internet.

Por um lado, não se pode negar que o objetivo é louvável. Trata-se de um esforço genuíno para oferecer ao leitor tanto a lógica da área quanto os passos teóricos e experimentais que conduziram à consolidação de tal lógica. Mas é difícil não enfrentar esses passos, por mais graduais que sejam, sem berrar “Meu Quetzalcoátl!” mais alto do que o maia hipotético de Feynman, muitas vezes. É preciso atenção e diligência para acompanhar as flechinhas representando fótons e elétrons nos mais variados cenários — e cansa.

O ganhador do Nobel está ciente do tamanho do esforço, e da probabilidade elevada de fracasso. Ao principiar a terceira palestra, brinca: “Aqueles de vocês que já ouviram as outras duas palestras também vão achar esta incompreensível, mas vocês já sabem que isso não é nenhum problema: a maneira como nós descrevemos a natureza é geralmente incompreensível para nós”. No mínimo, quem encarar ambos os livros sairá deles com a convicção indispensável de que o universo é muito mais estranho que a ficção.

Este texto foi realizado com o apoio do Instituto Serrapilheira

Quem escreveu esse texto

Reinaldo José Lopes

Repórter da Folha de S.Paulo, é autor de Darwin sem frescura (Harper Collins BR).

Matéria publicada na edição impressa #20 Mar.2019 em fevereiro de 2019.