Divulgação Científica,
Tratamento psicodélico
Em tempos alucinatórios, Michael Pollan descobre como certas drogas podem ajudar a manter a lucidez
27fev2019 | Edição #20 Mar.2019Foi por causa de um pequeno livro mofado em um sebo universitário que entendi que eu precisava tomar psicodélicos. O autor era John Cashman e o título, LSD. O crucial naquele tomo de capa e texto monocromáticos, contudo, era sua data de publicação: 1965. A droga ainda era legal dois anos antes do Verão do Amor, marco do movimento hippie. O livro tratava do LSD até o limiar da explosão estética, cultural e política que aquela molécula provocou no mundo: era o ácido ainda sem carma. Uma jovem droga que revolucionava a psiquiatria, a psicologia e, mais importante, que estava sendo utilizada desde os anos 1940 como ferramenta científica para a investigação da menos objetiva de todas as experiências humanas: a mística.
Encontrei esse livro em 1997, antes de ter minha primeira incursão psicodélica. Tive uma pequena revelação: era bem mais fácil conseguir a droga do que outros livros sobre ela no Brasil, sobretudo em português. A proibição desses compostos só fez erradicar suas respectivas bulas.
Daí a dose de otimismo que me veio ao ler a introdução de Como mudar sua mente — Pollan fala com o mesmo interesse que eu tive ao ler o livrinho de Cashman, 22 anos atrás. Ao se deparar com estudos clínicos de algumas das mais sérias instituições médicas dos EUA, que relacionam a experiência psicodélica a uma sensível melhora na relação de pacientes terminais com a própria morte, o autor percebeu que a força transformadora das drogas não estava na iconoclastia estética e política — no drop out de Timothy Leary —, mas em uma abordagem mais, digamos, sóbria. Ela consistia em explorar os estados alterados da consciência e, como saldo, “mudar a própria mente” de forma intencional e duradoura.
Pollan notou que esses novíssimos estudos não eram pioneiros. Eram apenas o desbloqueio de uma estrada fechada desde o final dos anos 1960. Ela estava sendo construída em consultórios, agências de espionagem e manicômios. Em milhares de textos médicos, filosóficos e literários. Em experimentos científicos e espirituais realizados em ambos os lados da Cortina de Ferro. Foi interditada pelo pânico moral que a revolução de Leary causou, mas seguiu sendo percorrida clandestinamente por alguns.
A sóbria curiosidade e a missão de preencher uma enorme lacuna, a do jornalismo literário científico, fizeram Pollan entender que precisava recontar a história dos pioneiros (o que ele chama de “primeira onda”) e da renascença dos estudos atualmente em curso, dar nomes aos discretos protagonistas dessa retomada, emendar recentes relatos de pacientes que usaram essas substâncias em contextos terapêuticos e, na parte mais pessoal e delicada do livro, tomar três dessas substâncias (LSD, psilocibina e 5-MeO-DMT) para traduzir o que, por definição, não cabe em palavras: como é experimentar sua própria consciência livre dos grilhões do ego e da linguagem. Difícil imaginar um autor mais adequado para essa trip do que Michael Pollan.
Coisas que decidimos ingerir
Seis de seus sete livros anteriores — quase todos best-sellers — cobrem um espectro largo da relação entre humanidade, produção e consumo de alimentos. Olhando de perto, porém, o assunto é outro. Ao explorar a galáxia que gravita ao redor de nosso estômago, Pollan alarga, na falta de uma expressão melhor, o campo moral que rege nossas escolhas à mesa. O complexo mapa histórico, econômico e cultural que ele traça em torno da comida é o lastro para insights que não cabem apenas no prato. Sobretudo depois de O dilema do onívoro (2006), ele se tornou autor inevitável em debates públicos que vão dos direitos animais ao impacto do micro-ondas nas relações familiares.
Mais Lidas
Assim, o que parece ser uma guinada temática definida no subtítulo, O que a nova ciência dos psicodélicos pode nos ensinar sobre consciência, morte, vícios, depressão e transcendência, pode ser simplesmente um passo adiante em sua busca por sentidos nas coisas do mundo que os seres humanos decidem ingerir. Logo de saída, Pollan descobre um segredo restrito ao clube de nerds que liga xamãs andinos a neurocientistas europeus: nada que se ingere oferece tantos insights evolutivos quanto determinadas plantas e drogas. Mas diferente do que faz ao tratar dos alimentos, aqui ele precisa redigir um metalivro: uma obra para expandir a consciência pública sobre a própria ideia de expansão da consciência.
Pollan se aprofunda nas substâncias para discutir a importância da ‘diversidade neural’
Quase a totalidade dos livros sobre o tema foram escritos por dedicados psiconautas: pessoas que tiveram sua consciência, vida e espiritualidade totalmente transformadas por experiências psicodélicas. Por isso, naturalmente, transpiram o tom numinoso que essas experiências produzem em quem as tem. Infelizmente, quase sempre pecam no rigor jornalístico e patinam para a especificidade autorreferente. Expande tudo, menos seu alcance — são escritos para outros convertidos da Igreja dos Psicodélicos, como o autor bem define os gourmands dessas substâncias.
Novato no assunto, Pollan teve vantagem sobre os experts. Reconstruiu uma tradição perdida e escreveu um livro de interesse geral, livre de estigmas ou pesadas cargas pessoais, para um público leigo como ele. O amadorismo no assunto foi um de seus grandes trunfos para uma fácil e fresca assimilação. E fiou sua credibilidade como jornalista e ensaísta tanto para conseguir amplo acesso — nada simples em uma comunidade que por muito tempo trabalhou na fronteira da ciência, do misticismo, do tabu e da legalidade — quanto para conduzir leitores às implicações dos psicodélicos para a vida real.
A imprensa — sobretudo de língua inglesa — vem noticiando estudos que colocam o LSD, os cogumelos mágicos, a ayahuasca e o MDMA como um novo paradigma no tratamento de depressão, do trauma, da ansiedade, do medo da morte, do vício. Ou como instrumentos para a neurociência investigar como a consciência emerge no cérebro. Ou como microdoses de certos psicodélicos ajudam executivos e programadores a terem uma rotina mais focada e criativa.
Assim como fez com a cozinha, Pollan estendeu o campo moral sob o qual a renascença psicodélica pode ser compreendida. E como ela pode beneficiar a vida, a saúde mental de pessoas comuns. Sobretudo em tempos de erosão política e implosão psíquica.
Os smartphones mostram: o império da opinião, a desinformação em massa, a desconexão entre os sistemas naturais e econômicos, a ruína das estruturas semânticas e das identidades que deveriam estabilizar a própria realidade. Não é preciso LSD para enxergar o nó górdio de nossa distopia cotidiana: o real anda alucinatório. Talvez seja essa a história oculta nesse livro sobre drogas que, equivocadamente, são chamadas de alucinógenas.
Desde a introdução até o fundamental epílogo, Pollan se aprofunda nas substâncias como a superfície para discutir a importância de reprogramar a cabeça e faz um elogio ao que ele chama, corretamente, de “diversidade neural”. E a importância da exploração consciente de outras formas que nosso cérebro é capaz de perceber e sintetizar a própria realidade.
E aqui o título em inglês é intraduzível: How to Change Your Mind significa mais do que “Como Mudar sua Mente”. Mas também “Como Mudar de Opinião”, “Como Pensar Diferente”. Ver as coisas de outra maneira pode ser mais do que desejável: pode ser a meia-volta no beco aparentemente sem saída em que muitos de nós nos encontramos hoje.
Este texto foi realizado com o apoio do Instituto Serrapilheira
Matéria publicada na edição impressa #20 Mar.2019 em fevereiro de 2019.