Divulgação Científica,
Os mil alertas para a crise climática
Apresentações de autores como Bruno Latour e Donna Haraway em colóquio sobre o Antropoceno são publicadas por editora estreante
27jul2022 | Edição #60No programa Good Morning Britain, do canal britânico ITV, o jornalista Richard Madeley entrevista Miranda Whelehan, ativista ligada ao Just Stop Oil. O movimento ambientalista foi responsável pelas manifestações contra o uso de combustíveis fósseis em algumas usinas de petróleo em Essex, no Reino Unido, e a repercussão do evento levou Whelehan a protagonizar uma cena análoga àquela interpretada por Jennifer Lawrence no filme Não olhe para cima (2021).
Na ficção de Adam McKay, Lawrence e Leonardo DiCaprio interpretam dois cientistas que, após descobrir um meteorito em rota de colisão com a Terra, tentam alertar as autoridades americanas sobre a provável destruição do planeta. Em uma cena, os cientistas concedem uma entrevista a um programa de TV, mas veem a gravidade dos fatos diluída em uma performance comprometida com o entretenimento da audiência. Em certa altura, Dr. Randall (DiCaprio) dispara: “Desculpe, mas nem tudo tem que ser espirituoso, encantador ou fofo. Às vezes, só precisamos dizer as coisas. Ouvir as coisas. Vamos deixar claro mais uma vez. Tem um cometa enorme vindo em direção à Terra. O motivo de sabermos isso é porque nós vimos. Vimos com nossos olhos usando um telescópio. Até tiramos fotos dele. Precisam de mais provas?!”.
Na vida real, ao longo do programa do ITV, a ativista Miranda Whelehan, de vinte anos, é convidada a explicar as intervenções do movimento Just Stop Oil, que pedem o bloqueio dos terminais de petróleo e alertam sobre a crise climática no mundo. Tal qual a ficção de Adam McKay, o comunicado sobre a iminência da catástrofe climática é reduzido a piadas e intimidações. “O slogan Just Stop Oil é bastante divertido e demasiado infantil”, afirma o apresentador, desqualificando a campanha. Em resposta às intervenções negacionistas, Whelehan insiste em apontar todas as evidências científicas e, por fim, conclui: “É cegueira voluntária e vai nos matar”.
Em uma entrevista concedida a Eliane Brum e publicada no jornal El País, em 29 de outubro de 2014, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro sugeriu um conceito de Günther Anders para explicar a desconexão entre a maioria das pessoas e um problema com a dimensão da crise climática. Viveiros de Castro explica que, se existem os fenômenos subliminares (tão pequenos que são imperceptíveis, mas com os quais já estamos familiarizados), também existem os “supraliminares”, fenômenos tão grandes que também não seriam perceptíveis em função de sua enormidade. Anders cunhou o termo para dar conta dos efeitos da bomba atômica, mas, segundo o antropólogo, também seria adequado para pensarmos a crise climática já que não a enxergamos justamente pelo tamanho do seu impacto.
Na contramão dessa desconexão e do negacionismo, entre os dias 15 e 19 de setembro de 2014, realizou-se na Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, um evento que foi ao mesmo tempo um convite e um alerta para pensar o impacto de uma espécie que se converteu no principal vetor de destruição da Terra. O Colóquio Internacional Os Mil Nomes de Gaia: do Antropoceno à Idade da Terra, nas palavras do filósofo Bruno Latour, foi uma “espécie de ritual político, científico e antropológico” que reuniu filósofos, intelectuais indígenas, antropólogos, climatologistas, historiadores e teóricos da literatura. Todos engajados na elaboração de um aparato imaginário e conceitual que possa auxiliar na compreensão do nosso tempo. Segundo Viveiros de Castro, um dos organizadores do colóquio, o objetivo era “não só contribuir para uma repercussão mais ampla, na opinião pública nacional, do que já se sabia então sobre a emergência climática, como explorar as dimensões políticas, culturais, históricas e filosóficas do advento do Antropoceno”.
Para muitos cientistas, a espécie humana se tornou o principal vetor da destruição da Terra
O termo Antropoceno é uma designação proposta para nomear o que seria a nova época geológica, em que a espécie humana deixa de ser um agente biológico para se tornar um “fator causal de magnitude capaz de alterar as condições biotermodinâmicas do planeta”. O que nomeamos espécie humana se torna o principal vetor de transformações cujos efeitos destrutivos já são, para muitos cientistas, irreversíveis. No centro dessas transformações encontramos o aquecimento global e as mudanças climáticas.
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O colóquio Os Mil Nomes de Gaia denunciou que o tema da crise climática planetária era ignorado pelas elites governantes, minimizado pelos meios de comunicação e pelos movimentos populares. Passados sete anos, a situação se agravou. Nos primeiros três anos de governo Bolsonaro, o desmatamento aumentou 138% em terras indígenas e 130% nas áreas de preservação. Alguns cientistas afirmam que a floresta amazônica chegará ao ponto de não retorno quando cerca de 25% de seu território for destruído. Hoje, 20% da floresta já foi desmatada. A crise climática planetária tem dimensões ainda mais catastróficas no Brasil, dadas sua extensão geográfica e centralidade econômica. Como sublinhou Eliane Brum em artigo recente no El País, nesse passo, o Brasil deixará de ser “o país do futuro” para se tornar aquele que inviabiliza um futuro da humanidade.
É preciso ter medo
Para alguns, essas afirmações soam excessivamente alarmantes, mas como declararam, cada um a seu modo, o xamã yanomami Davi Kopenawa e a jovem ativista Greta Thunberg, é preciso temer. Em sua conferência no Mil Nomes de Gaia, a professora Déborah Danowski nos lembra que “quem não tem medo, ou pelo menos finge que não, é Bolsonaro, o indiferente, o genocida e seus apoiadores incondicionais. É preciso ser um covarde para não ter medo”.
O colóquio trouxe para o primeiro plano a dimensão de uma crise tantas vezes vista como lateral. Mas é preciso mais, porque a maior parte das pessoas ainda minimiza a crise. Em um esforço de ampliar ainda mais os braços que fazem soar esse alarme, a estreante Editora Machado acaba de publicar o primeiro dos dois volumes que reúnem as apresentações de Os Mil Nomes de Gaia. Incluindo pensadores centrais como Bruno Latour, Déborah Danowski, Alexandre Costa,
Peter Szendy e Donna Haraway, entre outros, é um tecido de narrativas que constrói interrogações sobre o presente e mobiliza afetos para a reinvenção de um futuro.
Matéria publicada na edição impressa #60 em julho de 2022.
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