Ciências Sociais,

Versões de Exu

Resultado de um longo e complexo processo sincrético, a divindade encontra inúmeras representações no Brasil

10fev2023 | Edição #67

Há cem anos, Manuel Pedro dos Santos, vulgo Bahiano, gravou “Sai Exu”, música de Ernesto Joaquim Maria dos Santos, o Donga. Registrada como jongo africano, inicia com uma saudação: “Vamos saravá, Calunga/ vamos saravá, quem madruga/ vamos saravá, Omolu/ vamos saravá, Pai Exu”. A saudação inicial representada pela interjeição saravá se dirige primeiramente a Calunga (ou Kalunga), termo encontrado nas línguas do tronco banto que, no contexto da diáspora, pode ter diferentes significados, entre eles o de uma divindade. Depois, reverencia Omolu e (Pai) Exu, duas divindades do panteão iorubá. Na sequência, dirige-se a um interlocutor: “Pode fazê despacho com cabeça de urubu/ hei de sair à rua gritando sempre sai Exu”.


Tradução-Exu – ensaio de tempestades a caminho, de Guilherme Gontijo Flores e André Capilé

Os versos finais fazem crer que está em jogo um dinâmica de ataque e defesa: de um lado, alguém faz um despacho/oferenda para Exu a fim de que a divindade interceda por ele, contra o eu-lírico; por outro lado, o eu-lírico, em posição defensiva, afirma que está protegido porque tem o corpo fechado. A saudação feita a Calunga e Omolu, divindades vinculadas à morte e, em seguida, a Exu, ligado aos rituais de fechamento de corpo, sugerem justamente a manutenção dessa proteção. A dinâmica pressupõe uma ação ambivalente: Exu intercede (ou poderia, se quisesse) pelos dois lados.

Os exemplos musicais dessa condição dúbia pululam no cancioneiro brasileiro e seria possível elaborar uma arqueologia dessas representações, mas o fundamental aqui é como essa dinâmica de ambivalência está sobretudo vinculada à imagem de Exu. Muito antes de baixar por essas bandas, desfilar na comissão de frente da Sapucaí e vencer o carnaval carioca; antes ainda de pintar no centro de mesa de um bar, cheirar, fumar, cuspir e tocar piano, como escreveu Aldir Blanc; esse “santo estranho”, “aquele um das quebradas”, já tinha batido ponto, ao que tudo indica, no calundu de Luzia Pinta, nos idos de 1740, em Minas Gerais. Luiz Mott escreveu que o calundu de Luzia Pinta, espécie de culto afro-religioso doméstico, foi tipicamente enraizado no ritual xinguila da nação Angola. Isso significa que, se realmente Exu pintou por lá, como sugere o Processo da Santa Inquisição guardado na Torre do Tombo, na ocasião, ele atendia por outro nome.

Sincretismo

Exu (ou o que ele representa) tem muitos nomes, e isso se deve às diversas diásporas de origem africana ocorridas em quase quatro séculos de escravidão no Brasil. Entre os séculos 16 e 19, mais de 12 milhões de africanos foram escravizados e vendidos, dos quais mais de 5 milhões desembarcaram no Brasil. A diversidade cultural trazida do continente africano foi enorme, e se transformou em um amálgama cultural ainda mais amplo e complexo a partir dos difusos processos de trocas e sincretismos, não apenas entre as diferentes etnias africanas, mas também entre as culturas indígenas e as europeias.

Variadas formas de religiosidades resultaram desses processos. Cada uma com seu espaço de ritual, seu sistema de símbolos e mitos, sua congregação de divindades e sua língua-cerimonial, que muitas vezes combina idiomas africanos — como quicongo, quimbundo, iorubá e fon — com línguas indígenas e o português. Cada religiosidade exige uma culinária, um conjunto de vestimentas e adereços, uma fauna doméstica sacrificial, uma vasta diversidade de folhas e uma música-ritual. E, apesar das singularidades, todas elas são detentoras de uma representação, com algumas dimensões particulares e outras compartilhadas, de Exu.

Mais do que um lugar de rituais, esses espaços cerimoniais (ou terreiros) são locais onde os africanos exilados e os afrodescendentes puderam (e podem) pensar a liberdade, falar sua língua, contar a história dos seus ancestrais e novamente encontrar uma condição de humanidade perdida na escravidão. E além de centrados na preservação das tradições, esses espaços se converteram em territórios de invenção de modos de vida sustentados por cosmovisões não-brancas, sustentáculos de uma epistemologia decolonial.

Essa compreensão dos mitos e ritos afro-brasileiros como possibilidades de (re)fundação de uma filosofia não-europeia ganhou força a partir das mobilizações dos movimentos sociais e dos estudos — especialmente tributários, em um primeiro momento, a Pierre Verger, Edison Carneiro, Roger Bastide, Juana Elbein do Santos, Monique Augras e Ruth Landes. Foram, sobretudo, seus estudos, divulgações e traduções que subsidiaram um avanço na direção de uma formulação filosófica que, ao não se limitar a um território de conceituação acadêmica tantas vezes infértil, é política. Autores como Leda Maria Martins e Muniz Sodré — ela sobretudo escrevendo a partir da cosmovisão banto e ele de uma cosmovisão ioruba — são dois exemplos de intelectuais que atuam nesse sentido.

Nessa gira epistemológica, a figura de Exu, desde o início, teve predominância como metáfora conceitual. E se inicialmente essa presença de Exu foi notória como epicentro da formulação de uma epistemologia decolonial afro-brasileira, recentemente Guilherme Gontijo Flores e André Capilé ampliaram os territórios de encruzilhadas tomando (ou sendo tomados por) Exu como metáfora de uma proposição também tradutória. No recém-publicado Tradução-Exu [ensaio de tempestades a caminho] os autores mencionam justamente como um incipiente esforço de formulação conceitual o exemplo da tradução de “The Raven”, de Poe: um corvo que foi traduzido como um “urubu brasileiríssimo”. Belchior, antes, traduziu por Assum Preto. Mas os tradutores Rodrigo Gonçalves e Guilherme Flores optam pelo urubu-despacho porque, quando se fala em Exu, assim deve ser.


Guilherme Gontijo Flores [Acervo pessoal]

Segundo Flores e Capilé, a tradução-exu é uma proposição que tanto se distancia das concepções tradutórias norteadas por supostas equivalências que desprezam corpos e territoriedades (ilustradas pela metáfora do caminhão de mudança) quanto das proposições de transcriação haroldianas, que, em alguma medida, almejam o parricídio a fim de ocuparem o lugar do original: “A tradução-exu é um parricídio muito peculiar — não considera o sentido absolutamente inessencial, porque deseja num só gesto bater cabeça ao texto original e jogá-lo por terra, como Exu, que a um só tempo venera, serve e engana”.


André Capilé [Acervo pessoal]

E apesar de, em grande medida, ser tributária às experiências tradutórias de textos africanos ou afro-brasileiros situados nos territórios religiosos e, particularmente, às traduções dos Orikis realizadas por Antônio Risério, a proposição de uma tradução-exu não é uma tradução negra. Como explicam os autores: “Exu, traduzido numa espécie de conceito, não pode ser contido numa ideia essencializante de negritude, nem pode ser retido na figuração de um fenótipo, por mais que tenha suas origens nos cultos africanos. Entendo Exu, portanto, como organização relacional da contradição, movência do paradoxo como gesto e assunção do corpo como jogo”.

Esse modo-exu de traduzir é ilustrado no ensaio com diversos exemplos que se por um lado são extremamente díspares, porque em última instância a proposição tradutória pressupõe a singularidade da experimentação, por outro, nota-se que há algo de comum em todos eles: a “mobilização crítica de um fazer poético e crítico afeito a Exu”. Isto é, uma dimensão ambivalente, como é próprio de Exu, que propõe uma transgressão radical e o risco de “uma péssima piada deliberada que, por revisão crítica do original, pode se tornar maravilhosa”.

Além de um experimento de conceituação fractal de um modo-exu de traduzir, o livro de Capilé e Flores tem a grandeza de se dobrar sobre o próprio eixo vertendo ao português uma série de textos nem sempre contemplados por esforços tradutórios do passado — e a tradução das Mambu, cantigas cantadas no Candomblés Angola-Kongo, talvez sejam o melhor exemplo. Como sugere o título da obra, depois do ensaio, há uma tempestade a caminho. A tempestade anunciada é um segundo livro, Uma a outra tempestade, em que Capilé e Flores avançam sobre The Tempest, de William Shakespeare, e Une tempête, de Aimé Césaire, propondo uma tradução em consonância com as proposições teóricas-conceituais expostas. Pode-se dizer, por fim, que se o livro-ensaio Tradução-Exu é o ipadê (ou o mavile) — a cerimônia inicial que pressupõe um pedido de licença a Exu —, a festa propriamente dita começa no livro seguinte. 

Quem escreveu esse texto

Marcos Ramos

É professor na Universidade Nacional da Colômbia. Publicou Balaio de Gato (Artigos, 2022) e Anatomia da elipse: escritos sobre nacionalismo, raça e patriarcado (Cousa, 2018).

Matéria publicada na edição impressa #67 em fevereiro de 2023.